Políticas da Gambiarra

Por Hermano Callou

 

Ao entrarmos na sala de exposição do Santander Cultural, em Recife (PE), nos deparamos com um objeto singular. Trata-se de uma lâmpada acesa no chão, ligada por fios que atravessam dois eletrodutos que sobem pela parede, conectados a uma fiação que lhe fornece eletricidade. Basta um pouco de tempo para reconhecê-lo: trata-se de um “macaco” ou “gato”, nomes populares no Brasil para o dispositivo artesanal responsável pela conexão clandestina às redes de distribuição de energia elétrica, construído em geral com o intuito de fazer uso da eletricidade sem o respectivo custo oficial.  Tal estratégia se insere dentro de uma miríade de pequenas intervenções urbanas, ligeiros contra-usos da cidade ou reapropriações cotidianas do comum que define o universo artístico da exposição CONTRA_USO, do artista pernambucano Márcio Almeida.

CONTRA_USO integra o projeto Arte Contemporânea de Pernambuco do Santander Cultural, cujo objetivo é viabilizar exposições individuais de artista locais veteranos, de repercussão nacional. Sob curadoria do crítico e professor carioca Marcelo Campos, a exposição abrange 28 obras de Márcio Almeida, em quatro suportes diferentes: pintura, fotografia, vídeo e aquilo que o curador nomeia de objetos instalativos, como é o caso do “gato” ou “macaco” descrito acima. A variedade dos materiais não obscurece o conceito preciso que norteia a exposição: trata-se de uma investigação artística da geopolítica do espaço urbano, dos seus modos de ocupação e uso, apropriação e significação cotidiana, realizados pelos seus próprios habitantes, que o artista registra, reproduz ou reinventa na sala de exposição.

 

Contra_uso – Marcio Almeida no Santander Cultural de Recife

 

Usar um objeto, um lugar ou uma cidade é, necessariamente, um ato de invenção, uma descoberta que revela nas coisas uma nova potência, que não se atualizava nas coordenadas anteriormente dadas. O uso se diferencia do consumo, porque os objetos do consumo “incorporaram em si a própria não-usabilidade”, capturados que estão nos dispositivos da sociedade espetacular, que procuram destituir as coisas de suas capacidades de um uso novo e inesperado. Antes de identificar tais usos ou contra-usos dentro daquilo que popularmente é chamado de jeitinho brasileiro, que denegaria tais apropriações ao terreno do desvio da norma, Márcio Almeida procura resgatar uma potência positiva do uso, revelando nas gambiarras populares, nos objetos de uso pervertido, nas ocupações e invasões do espaço urbano, uma política da redescrição da experiência da cidade, que seria imanente a tais formas de uso.

Destaca-se na exposição, nesta perspectiva, o seu trabalho em vídeo (2006), realizado durante o processo de pesquisa para o projeto Entre o Novo e o Nada, em que podemos ver uma família montando com materiais de baixo custo ou custo nulo um barraco popular. O registro é acompanhado por um pequeno manual chamado Fast-House – manual de montagem de barraco, distribuído na galeria, em que instruções para construção de habitações informais é oferecida em cada um de seus detalhes. O jogo entre a formalidade do discurso manualístico e a informalidade da construção ganha força, na medida em que revelam os tensionamentos próprios às formas de contra-uso do espaço urbano. A própria idéia do barraco é conjugada fora dos arcanos da falta e da carência, conquistando na exposição uma estranha positividade, enquanto ato de ocupação criativa da cidade.  Tais soluções cotidianas da habitação, realizadas no acocho e na improvisação, materializam uma concepção de cotidiano que não mais se reduz ao território da repetição e do mesmo, mas se apresenta enquanto terreno de práticas inventivas de sobrevivência e recriação da vida em comum.

O resgate e a produção de tais protocolos de uso não-oficial da cidade por Márcio Almeida permitem pensar a própria cidade enquanto suporte artístico. As imagens e os objetos de CONTRA_USO evidenciam, de tal modo, o esforço de esgarçar as fronteiras entre arte e não-arte, permitindo que o olhar do espectador recaia sobre as próprias formas de vivência da cidade existentes fora da galeria, enquanto invenção improvisada da vida, apropriação criativa do espaço e uso produtivo dos objetos.

1- AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007.

 

Hermano Callou é jornalista, pesquisador em cinema e arte contemporânea e curador do Cineclube Dissenso, na Fundação Joaquim Nabuco (FUNDAJ), Recife.