Para repensar a cidade

por Pedro Neves

 

Marcado por atrasos e muita expectativa, o 47o Salão de Artes Plásticas de Pernambuco apresenta seus resultados em duas exposições em cartaz no Museu do Estado e no Museu da Arte Moderna Aloisio Magalhães (Mamam), em Recife. O Salão pernambucano se diferencia por não exibir e premiar obras já realizadas, mas por oferecer bolsas para pesquisa e realização de trabalhos, bem como residências, aos artistas inscritos em edital. Para a 47a edição, o edital foi lançado em 2008, as bolsas liberadas entre 2009 e 2010 e as obras resultantes expostas, enfim, entre dezembro de 2011 e fevereiro de 2012. Devido à quantidade de artistas e obras contemplados, atenho-me, neste texto, aos trabalhos mais instigantes em exposição no Mamam.

É notável a quantidade de trabalhos que têm o espaço urbano como mote. O tema, aliás, tem sido coqueluche na produção artística e cinematográfica recifense dos últimos anos, tendo, em 2011, alcançado o posto de trending topic também no jornalismo e nas discussões nas redes sociais. O timing da curadoria de Maria do Carmo Nino e Ricardo Basbaum parece, portanto, perfeito para potencializar reflexões.

A exposição começa muito bem com uma série de fotografias do paulista Fábio Okamoto de “texturas” típicas de grandes cidades: paredes sujas, pintura grosseira, tapumes cobertos de cartazes rasgados. Em jogo, o contraste entre o registro frontal, frio, impessoal, e a riqueza de traços e cores das superfícies representadas. As séries “Feridas” e “Tapumes” sugerem uma arqueologia da cidade, ao mostrar, em cada imagem, diversas camadas de pintura e de cartazes heterogêneos que, cobertos por novas camadas, conservam ainda os vestígios de suas últimas encarnações. No trabalho de Okamoto, a cidade é produto da história, resultado do acúmulo de décadas, séculos ou milênios de civilização e natureza, sobrepondo-se infinitamente, tentando por vezes ocultar as marcas do passado, que insistem, entretanto, em vir à tona. O tempo e a ação humana constroem e corroem o entorno que, brutalizado, ainda assim possui enorme beleza. As paredes descascadas de Okamoto assemelham-se a pinturas abstratas, e parecem questionar silenciosamente a noção de “cidade limpa” como ideal estético e de bem-estar no espaço urbano.

Divide o térreo com Okamoto uma instalação de Graziela Kunsch, que pretende recriar e expandir o processo de construção da quarta edição da revista Urbânia, que a artista de São Paulo edita. Um pufe, uma TV com DVD e uma prateleira com discos (filmes, documentários, registros de debates) compõem a parte audiovisual da obra. Sobre uma mesa, livros e calhamaços xerocados, revistas e fanzines diversos, uma máquina copiadora (que deveria funcionar, mas estava quebrada) e um computador com acesso a internet, conectado no site Urbânia 4 – a revista existe apenas virtualmente, o que a dota de um caráter aberto, sempre passível de modificações. A autoria do conteúdo é compartilhada com uma rede de colaboradores. O site parece, de fato, em construção, e não apenas no bom sentido. A seção sobre Recife, por exemplo, contava com apenas um texto: “Caranguejos com cérebro”, manifesto Manguebit assinado por Fred Zero Quatro em 1992. Um documento de importância histórica e até hoje instigante, sem dúvida, mas facilmente encontrado em diversos endereços da internet e que não representa o que de mais novo e interessante tem se produzido na cidade em termos de reflexão sobre o espaço urbano. Outros textos incluem relatos críticos de debates promovidos pela revista e traduções de textos semi-ficcionais dos anos 70. Documentos que, assim como a mini-biblioteca disposta sobre a mesa, fornecem material rico para o pensamento, mas que se beneficiariam de um pouco mais de foco e direcionamento na seleção.

No andar de cima, uma pequena sala é destinada a abrigar a exposição-dentro-da-exposição que é a obra de Jura Capela, intitulada “Inventário da arte pernambucana”. Trata-se de uma instalação um tanto caótica de obras de artistas como Isabela Stampanoni, Fernando Peres, Francisco Baccaro e o próprio Jura, cartazes de cinema e ingressos para shows (Chico Science e Nação Zumbi figura entre eles) e outras relíquias. As peças não exatamente dialogam entre si; tem-se a impressão que a seleção consiste no que o artista conseguiu arranjar de empréstimo. Apesar de apinhada, também falha em apresentar um inventário de fato abrangente, visto que os artistas representados são poucos e todos, por assim dizer, da mesma “turma”; falta pluralidade. Completa a mini-mostra um documentário bastante careta, feito a partir de depoimentos de artistas, cineastas, curadores, professores e “especialistas” em geral na cena recifense.

A cidade também se faz pensar através de um prêmio especial concedido a grafiteiros de destaque em Recife. Entre levar o grafite ao museu (perdendo assim a característica essencial de “arte de rua”) e exibir registros de obras no espaço urbano, o Salão optou pelas duas estratégias. Elvis Almeida, Galo de Souza, Elaine Bonfim, Derlon Almeida e Wagner Ponto Cruz criaram painéis especialmente para a exposição. Na parede, pequenos monitores mostram vídeos e slideshows dos artistas em ação, mas a má qualidade das imagens e a configuração errada dos monitores atrapalham a fruição.

Outro trabalho que também sofre com a falta de cuidado da montagem é “Ópera crua”, de Marcos Costa e Carlos Mascarenhas. O vídeo da apresentação musical, que coloca no mesmo palco músicos eruditos e vendedores ambulantes, fazendo dialogar a arte institucionalizada com a musicalidade das ruas, perde muito com a falta de isolamento acústico; o som compete até com o ar-condicionado.

 

Jonathas de Andrade – Pacífico 

Falta de isolamento afeta também “Pacífico”, de Jonathas de Andrade, e não apenas acústico: vaza luz diretamente sobre a tela na qual o vídeo é projetado. A ideia de Jonathas é brilhante e ambiciosa: uma ficção ambígua sobre as fantasias de pureza e ordem promovidas pela ditadura no Chile, travestida de filme de desastre e tendo como base um livro de fotos com legendas da época. Os cenários de papel e cartolina são lindos, mas a falta de domínio da técnica de animação em stop-motion filmada em super 8 resulta em muitas imagens desfocadas. O trabalho foi gravado, por coincidência, na época do terremoto que abalou o Chile em 2010, e o artista aproveitou para incluir na trilha sonora depoimentos de pessoas afetadas pela tragédia. Um desvio interessante que aponta para novas leituras, mas que acaba por desviar o foco da obra. Demasiado específicos e abundantes, eles também atrapalham o ritmo do filme, minando um pouco do seu poder. Pena; uma edição mais enxuta poderia ter tornado “Pacífico” uma obra muito contundente.

Jonathas têm mais sucesso com “4000 disparos”, slideshow em altíssima velocidade de retratos masculinos tirados nas ruas de cidades latino-americanas. Assisti-lo é exasperante: o olho deseja mais tempo para fixar-se nos rostos que aparecem, mas esse conforto é negado; apenas algumas fotos são congeladas por tempo suficiente (poucos segundos) para que se possa ter uma ideia de feições. É uma bela representação da experiência de andar em uma metrópole, e da identidade que se dissolve na multidão. A ambição totalizante de documentar a cara da América Latina é solapada pela própria grandiosidade de suas pretensões.

A exposição no Mamam, enfim, é irregular, com algumas obras fortes, muitas boas ideias e vários trabalhos que poderiam ter sido mais bem desenvolvidos. Conta ainda com obras de Dominique Berthé (PE), Izidorio Cavalcanti (PE), João Castilho (MG), Bianca Bernardo (RJ), Deyson Gilbert (SP) e Tatiana Devos Gentile (RJ).