Orientação para sete observações em “Isle of Innocence”

 

Um

Galeria de arte em São Paulo. Kunsthalle. Visita à primeira exposição individual da artista espanhola Elena Bajo no Brasil, intitulada “Isle of Innocence”. Espaço branco, aberto, exceto pelo par de colunas, luz natural das vitrines, artificial das lâmpadas fluorescentes. Na instalação, duas fontes de luz: um fio de LED azul neon, que percorre quase toda a extensão da base da parede do fundo da sala, e um painel de LED branca pendurado na parede esquerda, pelo qual transcorre repetidamente a frase “LOVE AND DO NOT MULTIPLY”.

 

 

Dois1

“Deus os abençoou e lhes disse: ‘Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra’.”

 

 

Três

As peças dispostas como numa vitrine. Não podemos andar entre elas, entrar no espaço que ocupam na instalação – um plano elevado de aproximadamente 15 metros quadrados, a 40 centímetros da altura do chão. São cinco os agrupamentos de peças de não mais que 1 metro de altura, espaçados sobre o plano elevado cuja superfície cinza é toda manchada por gotejamentos de tinta branca.

 

 

Quatro2

“As minhas armas são meus sonhos, é a minha vida subjetiva, é a minha consciência, a minha liberdade ética, é essa harmonia que canta dentro de mim, e toda a minha lealdade para comigo mesma; e eu não maculo a minha riqueza de vida, o meu tesouro interior, envolvendo-o na mesquinhez e na perversidade das leis dos homens ou misturando-o com dinheiro, essa coisa horrível que corrompe as consciências mais convencidas da sua fortaleza inexpugnável, e as escraviza, acorrentando-as à geena do industrialismo, ao chocar-se umas contra as outras na engrenagem sórdida da exploração do homem pelo homem.”

 

 

Cinco

No agrupamento à frente, estruturas amorfas lembram vísceras: um frasco de vidro, uma chapa com entalhe de duas folhas. À direita, peças esbranquiçadas: um bastão parcialmente coberto por uma manta fina que, pela textura, parece couro, dois azulejos, uma estrutura vertical de duas peças enlaçadas por fitas escuras empoeiradas. Um pouco atrás, à esquerda, um agrupamento de peças verdes: um cano de plástico que se desenrola ligando a metade inferior de uma garrafa pet vazia a uma espécie de bolsão hexagonal desinflado. Há também nesse mesmo agrupamento uma janela de madeira deitada no chão, com moldura retangular branca, vidro deslocado, deitado sobre a moldura, assim como o bolsão verde hexagonal. No lado esquerdo do plano elevado, uma série de objetos sintéticos brancos de base verde, quase idênticos, arredondados mas de forma irregular, como pedras, dispostos em linha reta sobre azulejos brancos. Por cima desses objetos, uma barra de alumínio suspensa por dois fios de nylon. No fundo do plano elevado, encostada na parede, uma série de sete janelas – a mesma moldura retangular branca da janela deitada no chão, vidro transparente, exceto uma, com vidro manchado por respingos de tinta vermelha. Passando por trás das sete janelas, o fio de LED azul neon.

 

 

Seis³

“A artista optou por abordar sistemas políticos do capitalismo, comparando o trabalho material das linhas de produção do passado com o trabalho imaterial de hoje. Após ampla pesquisa em arquivos digitais, Elena Bajo visitou Fordlândia, a cidade fundada por Henry Ford na Amazônia na década de 1930, para a produção industrial de látex, utilizado nos pneus dos carros da Ford… Fazendo uma alusão tanto ao ambiente artificial criado por Ford quanto ao ambiente digital de hoje, Elena Bajo cria a exposição ’Isle of Innocence’, uma instalação com caráter de vitrine, composta de sete obras: um ambiente para ser experimentado a distância pelo observador… Fora da instalação principal, um letreiro de LED exibe a frase ‘LOVE AND DO NOT MULTIPLY’ (AME E NÃO MULTIPLIQUE), tirada do título de um livro escrito pela anarquista brasileira Maria Lacerda de Moura.”

 

 

Sete

A faixa azul neon é o que mais chama atenção dentro do espaço. Embate entre material e imaterial, singular e múltiplo, determinado e indeterminado, orgânico e sintético, embora prevaleça na instalação o tom asséptico. A metade de garrafa pet vazia no centro age como uma bomba de oxigênio para o todo quase petrificado. Resquícios de formas orgânicas no salpicado de tinta branca no chão, nas vísceras, na irregularidade das peças arredondadas, no entalhe das folhas, nos respingos de tinta vermelha na janela e nos moldes enlaçados pelas fitas empoeiradas. Múltiplos nas janelas, colunas e pedras sintéticas, nos azulejos, no letreiro de LED que rejeita e reforça a multiplicação. Peças posicionadas como um cálculo matemático. Até que ponto a obra faz jus ao texto e o texto à obra? Simone Weil comenta que, no Jardim do Éden, a atitude salvadora seria a de quem fosse capaz de só olhar o fruto. O branco e o verde tornam-se vestígio das construções abandonadas de Fordlândia. Artefatos inventados feitos de látex natural e sintético. Fracassado o projeto de extração de borracha, mas não a lógica da máxima eficiência pelo menor custo. Assim ainda é necessária a operação minimalista de desmaterialização: ambos alcançam a plenitude de sua função quando imperceptíveis – os vidros das sete janelas inclinadas na parede e a exploração.

 

Gracieli Scremin
Novembro de 2015

 

1 Nova Versão Internacional, Bíblia Online. Gênesis 1:28. Web, 2/11/2015.

2 MOURA, Maria Lacerda de. ”A minha saudação”. Em: O Combate, São Paulo, n. 4824, p.1, 27/9/1928.

³ KUNSTHALLE. Texto descritivo da exposição “Isle of Innocence”, de Elena Bajo. Curadoria de Marina Coelho, São Paulo, 25/9/2015.

 

Referências
http://kunsthallesaopaulo.hospedagemdesites.ws/wordpress2/?page_id=5173