A mão de quem da de comer, revisões sobre a Casa Daros

 

Recentemente me dispus a pesquisar a bibliografia em torno dos espaços independentes e das iniciativas de autogestão ligadas ao mundo da arte. A pesquisa focou principalmente a América Latina, e confesso que foi acompanhada por um sentimento de quem chega tarde a uma discussão cujo ápice já aconteceu ou, no pior dos casos, já se deu por concluída. A maior parte da bibliografia sobre espaços independentes é recente e refere-se também a exemplos de gestão que aconteceram há 20 anos, no máximo. Essa margem de tempo, porém, coincide com a minha infância e adolescência, razão pela qual não fui testemunha dessas gestões.

Pois bem, foi no meio dessa pesquisa que deparei com uma das questões mais comuns que esses espaços suscitam: a pergunta constante sobre suas estratégias de financiamento. Diante de um contexto em que as políticas culturais estão começando a reconhecer a existência e a importância desses espaços para o desenvolvimento do circuito artístico e seu posterior impacto na economia do pais, é comum que esses locais, aproveitando a crescente filantropia dos países hegemônicos com aquilo que recentemente é chamado de “sul geopolítico”, procurem parcerias e patrocínios com fundações que pertencem a esses países. Foi assim que começou o meu interesse pela Coleção Daros, depois de ter encontrado seu nome relacionado a vários espaços latino-americanos independentes, entre eles La Rebeca e Lugar a Dudas, na Colômbia. Coincidentemente, a Casa Daros, no Rio de Janeiro, abriu suas portas com uma exposição de artistas colombianos chamada “Cantos Cuentos Colombianos”, exibindo especificamente obras de artistas com uma abordagem política ou, como eu costumo chamar, artistas abertamente políticos. Isso, no contexto colombiano, refere-se àqueles artistas que tratam de questões relacionadas ao conflito armado e suas muitas manifestações e consequências. A sensação de chegar tarde à discussão acrescentou-se depois do encontro dos textos de Guillermo Villamizar, artista e pesquisador colombiano, sobre a coleção Daros Latinamerica e seus vínculos com a fortuna de uma família suíça, da qual o senhor Stephan Schmidheiny, líder do emporio mundial do amianto[1], é o ultimo herdeiro. Os textos, intitulados “Daros Latinamerica: Memorias de un Legado Peligroso” e “Informe Daros: Arte y Dinero”, foram publicados no fim de 2012 e começo de 2013, numa plataforma virtual de crítica da Colômbia chamada Esfera Pública. Para mim a surpresa era que, pela primeira vez, eu lia sobre a controversa indústria que aportou o capital que deu origem à coleção.

Os textos de Villamizar trazem esse trânsito próprio do pesquisador na compreensão do objeto estudado, essa aproximação do geral para o específico. Nesse caso, a pesquisa da coleção Daros Latinamerica começa na Suíça, relatando a história da família Schmidheiny, o crescimento da sua empresa de asbesto e sua rápida expansão pela África e pela América Latina. A história dessa indústria encontra-se estranhamente relacionada a eventos como a Segunda Guerra Mundial e o Nacional-Socialismo alemão, o apartheid sul-africano e a ditadura na Nicarágua. Assim, o empório chega ao Brasil em 1942, com a produção de amianto-cemento em Osasco, estendendo-se a regiões mais afastadas durante a época da ditadura militar. Seguindo esse trânsito que traçavam os textos, acompanhei a distância geográfica e temporal da pesquisa, que começava no Rio de Janeiro e ia até a Suíça, passando por vários países da Europa, depois da África, e chegava à América Latina e até mim com uma proximidade assustadora – ao citar a carta que João Francisco Grabenwerg, antigo trabalhador da fábrica Eternit de Osasco, escreveu para o próprio Estephan Schmidheiny, na qual lembrava os momentos em que conversavam e iam juntos no Instituto Butantã, e pedia reparação pela doença pulmonar que tinha devido à exposição ao amianto na sua fábrica.

Meu interesse inicial era traduzir esses textos, publicados originalmente em espanhol, achando que o fato de não ter havido esse debate no Brasil devia-se a uma barreira linguística, e não a um desconhecimento deliberado da situação. Certamente não existe em português uma pesquisa como a de Villamizar, e traduzir esses textos ampliaria sua difusão. Basta, porém, uma busca simples, e o nome da Casa Daros já aparece relacionado à fortuna da família Schmidheiny e ao amianto. No ano de 2013, o crítico Fabio Cypriano publicou um texto na Folha de S.Paulo por conta da inauguração da Casa Daros[2], no qual informava questões específicas sobre o prédio em que funcionava a instituição, a reforma da qual ele foi objeto e a crescente “reconfiguração de espaços para as artes visuais no Rio, que viu abrirem as portas recentemente o Museu de Arte do Rio (MAR) e aguarda a abertura de outras três instituições: o Museu do Amanhã, o da Moda e o novo Museu da Imagem e do Som”. Na mesma publicação, Cypriano refere-se a Stephan Schmidheiny como responsável pela criação da coleção com sua ex-mulher, Ruth Schmidheiny, e com o curador Hans-Michel Herzog –, deixando claro não só que o vínculo entre a instituição e Stephan não existe mais, mas também descrevendo-o como “uma figura controversa […] crítico no uso do amianto antes que a substância cancerígena fosse proibida”, sendo condenado em primeira instância “na Itália, em 2012, justamente por causa de danos motivados pelo amianto […]” e liberado após apelação. Curiosamente, nesse mesmo artigo, depois de falar de Ruth Schmidheiny como quem banca a coleção e a Casa Daros, Isabella Nunes, então diretora do lugar, disse: “Temos dinheiro para manter a Casa Daros pelos próximos dez anos”.

De maneira que a polêmica em torno do capital que deu surgimento à coleção, e posteriormente à instituição, não é nenhum segredo. Trata-se mais daqueles casos em que, como bem disse o próprio Villamizar, não se chuta a mão de quem dá de comer, “assim seja uma mão genocida, como é o caso da indústria de amianto ao longo do século XX na Europa, Canadá, União Europeia, Japão, África ou América Latina” (Villamizar, 2012)

Essa situação não deixa de ser problemática, ainda mais que as obras que fazem parte da coleção são justamente as que pertencem a artistas reconhecidos pelo seu engajamento político. Mais do que pretender discutir a efetividade da arte política no que ela se propõe, trata-se de questionar o papel do artista em meio a essa imensa cadeia que é o mercado, em relação aos grandes capitais e aos discursos que eles impõem, ou que calam, como é o caso. Achar que o artista não é responsável pelos lugares por onde circula seu trabalho é ingênuo e faz com que o conteúdo que ele espera agenciar, político ou poético, seja visto apenas como o que é em termos de mercado, um valor agregado à obra que está sendo mercantilizada. Essa mesma questão é expressada por Andrea Fraser no seguinte comentário do seu texto “There Is No Place like Home”:

[…] há uma disparidade crescente entre as condições materiais da arte e seus sistemas simbólicos: entre o que a enorme maioria de obras de arte são hoje em dia (social e economicamente) e o que os artistas, curadores, críticos e historiadores dizem sobre o que as obras de arte – especialmente seu próprio trabalho ou a obra que apoiam – são e significam. Andrea Fraser, There’s no place like home. 2012

É como se nós, agentes do circuito da arte, tivéssemos desenvolvido uma habilidade particular para entender de forma separada a dimensão simbólica da obra de arte e os canais comerciais por onde esta circula. Como se fossem fenômenos diferentes de um mesmo objeto. E como se o fato de analisar esses fenômenos de maneira separada resolva o iminente conflito que representa uma condição cuja contradição é evidente.

A falha não recai unicamente na pretensão da arte política ou no nosso transtorno de identidade em respeito aos discursos da obra e do mercado, mas também na tendência à instrumentalização da arte, aquele idealismo que a entende não só como critica, mas também como mudança. É nesse lugar-comum que a arte latino-americana é lida, quase unicamente sob um viés político.

Afirmar que a arte deve cumprir um papel diferente de si mesma é reproduzir o tipo de pensamento típico dos editais estatais, em que não basta que o artista desenvolva seu trabalho, mas ele também é obrigado a oferecer uma contrapartida. Como afirmando que seu trabalho não é suficiente. A instrumentalização da arte falha porque a arte não serve para nada, porque a arte não pode ser entendida em termos de produtividade. Hoje esse discurso é o mesmo que serve para justificar a entrada de grandes capitais estrangeiros, de instituições que premiam ideias revolucionárias com apelo social. Dessa maneira, países da Europa financiam a esperança da mudança na América Latina. Se o que deveria encarnar a resistência está sendo utilizado para limpar culpas e prevenir responsabilidades, ao mesmo tempo em que incrementa a fortuna de um pequeno grupo que ostenta a maior parte do poder econômico e político do mundo, então faz-se necessário recolocar nossas ações.

Enquanto nossas atividades sejam subsidiadas pelos motores da desigualdade, qualquer argumento de que representamos uma força social progressista só pode contribuir para justificar essa desigualdade, entendida na (nem tão) nova função legitimadora dos museus.Andrea Fraser, L’1%, C’EST MOI. 2011.

Hoje em dia, Stephan Schmidheiny tem se dedicado a limpar seu nome, criando cuidadosamente a biografia de um homem que, além de ter dado inicio à instituição que abrigaria a coleção da sua família, é reconhecido pela sua preocupação com o meio ambiente e o desenvolvimento sustentável, por meio de sua Fundação Avina[3]. O tribunal de Turim, no qual Stephan estava sendo julgado por doenças relacionadas ao amianto e a crimes ambientais, deu uma sentença favorável a ele, argumentando que os delitos haviam prescrito[4].

A discussão atualiza-se de uma forma não menos suspeita, pois a Casa Daros está prestes a fechar[5]. Assim, devemos supor que os tais dez anos de dinheiro que havia para mantê-la já não existem. Mas o financiamento de propostas de arte política e dos chamados espaços independentes é um fenômeno que continua, sendo inevitável pensar na aplicação de uma perversa estratégia de controle do dissenso. Há também um ressurgimento das propostas que reivindicam a arte política, em concordância com as lutas de movimentos sociais frente à conjuntura atual. Se o contexto está aberto para recolocar e rever estruturas que antes considerávamos inquebráveis, repensemos também as formas com que esses artistas e esses espaços, que se entendem como atores políticos, podem se relacionar com esse tipo de financiamento.

“A única ’alternativa‘ hoje em dia é reconhecer nossa participação nessa economia para confrontá-la de maneira direta e imediata em todas as nossas instituições, incluindo museus, galerias e publicações”. Andrea Fraser, L’1%, C’EST MOI. 2011.

Por fim, permito-me anexar a continuação os links dos textos de Guillermo Villamizar sobre sua pesquisa a respeito da coleção Daros Latinamerica; afinal, foi a partir desses textos que surgiram as considerações que expus anteriormente.

Daros Latinamerica: Memorias de un Legado Peligroso. 2012
http://esferapublica.org/nfblog/daros-latinamerica-memorias-de-un-legado-peligroso/#_ftn4

Informe Daros: Arte y Dinero. 2013
http://esferapublica.org/nfblog/informe-daros-arte-y-dinero/

 

Sergio Pinzón
Novembro de 2015

 

[1] O amianto, também chamado asbesto, é o nome dado a um grupo de minerais fibrosos que possuem características como flexibilidade, dureza e resistência ao calor. Aproveitando tais propriedades, esses minerais foram utilizados pela indústria na fabricação de materiais de construção e produtos de fricção, entre outros materiais de resistência térmica. Devido a essas condições, o amianto é facilmente inalado, sendo altamente cancerígeno e causador de diversas doenças respiratórias.

[2] http://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/1250689-casa-daros-estreia-com-exposicao-de-obras-colombianas.shtml. Acessado em 10 Novembro 2015.

[3] http://www.avina.net/esp/sobre-avina/. Acessado em Novembro 10 de 2015.

[4] http://www.elperiodico.com/es/noticias/sociedad/juicio-los-3000-muertos-por-amianto-italia-acaba-sin-condenados-3706777. Acessado em 10 de novembro de 2015.

[5] http://oglobo.globo.com/sociedade/casa-daros-dupla-quer-transformar-espaco-em-escola-17265557. Acessado em 10 de novembro de 2015.

 

Referências

Andrea Fraser, L’1%, C’EST MOI. 2011
http://es.scribd.com/doc/106769108/ANDREA-FRASER-Spanish-Version

____________, There’s no place like home. 2012
http://whitney.org/file_columns/0002/9847/andreafraser_theresnoplacelikehome_2012whitneybiennial.pdf