falar com PHASMIDES, de Daniel Steegman Mangrané

 

desestruturar-se. confundir-se. corpo que se mistura à lama e opera por associação. sujeito-corpo-ambiente. sequer sujeito ainda: coisa. objeto que ANIMA. e então bicho. antes, poderia ser uma folha, um pedaço de pau, de árvore. enquanto planta, parte da paisagem; enquanto bicho, predomina? sobressai no todo? o animal existe, mas o que será essa existência enquanto mundo?

sobressalentes os modos de sossego que constrói um homem (no masculino, branco, singular) perante a TERRA, a que preço – desnorteia-se uma barragem, e cai sobre as cidades – de erguer os planos. dormentes, altivos, rígidos e retilíneos como nunca será uma planta. arranha-céus, ou sem precisar ir tão longe: de rastejos e lamaçais secos são preenchidas florestas e territórios nomeadamente inférteis – por ações infortunas. prédios, sem mantas. colossais membranas.

em outro canto surge um ramo. quem sabe já não estava lá. por acaso ou por persistência floresce, se espalha. rumina. aos poucos, enche-se de plenitude e não se sabe mais se é bicho ou planta, assunto ou paisagem. engenhosos desenhos na pele de alguns, cadeia sem medo de tantos, acontece. complexas organizações priorizam, a exemplo das formigas e de tudo aquilo que observa, um certo funcionamento que se perpetua. a não ser que – para ver as formigas – uns homens tenham derramado cimento nas frestas de formigueiros, e então formou-se uma escultura da megalópole subterrânea. repentinamente fossilizada. um simples genocídio em nome da ciência.

o que temos aqui é espaço produzido. consumido, pormenorizado, criado nos detalhes de composição. no começo é escuro, cascas de árvore. uma olhadela que espreita e averigua os detalhes da mata profunda, ou um simples jardim. sem verde, é quase tudo marrom. os planos são curtos, terminam antes que sejam decifrados. quiçá a duração de um rolo de filme, em metros, unidade de medida física da celulose que compõe a matéria, em 16mm. a celulose na tela – as frações de árvores, os papéis. quase tudo compõe. quase tudo escapa.

aos poucos, acontece a fusão. papéis dobrados dividem o espaço com os fragmentos de galhos e folhas envelhecidas. o fundo sombrio dá lugar ao branco. estruturas são erguidas por entre a espécie – os galhos – e a eles almejam. o animal vai esgarçar o limite do entre coisas, do que é nulo, do que se nulifica. do que desaparece.

a um mínimo movimento, veem-se patas. enfim, patas! é um bicho, agora. a sua aparição – fasmídeo, palavra-irmã de fantasmas – se dá de maneira semelhante à do monge de filmes recentes de tsai ming liang, tais como “walker” (2012) e “jornada ao oeste” (2014). o movimento, mínimo, é suficiente para identificar a ação e distinguir, a partir daquele momento, a personagem. na cena seguinte, o mesmo sucede. ele está lá? forma-se um jogo, em tempo lento, episódios.

acrobático, o disfarce do sutil bicho-bailarino forma ângulos, opera por semelhança até mesmo com as geometrias que o envolvem, papéis dobrados que muito se assemelham às construções de lygia clark: bichos, mais uma vez.

será importante essa distinção entre forma e forma, animal ou perfídia? a própria lygia clark nos dá pistas em suas anotações, em especial a partir de “caminhando” (1964), ao buscar uma espécie de dissolução da existência no mundo, em que corpo é também paisagem, atravessada e hibridizada por bichos, frequências, intensidades. “pássaros e leões nos habitam”, diz lygia. “são nosso corpo-bicho”, traz suely rolnik. da supressão do objeto: “a fantasia do mundo como um grande bicho não percebido pelo homem”.

daniel steegman mangrané, em entrevista a fábio zucker, narra que, conscientemente, não pensou em lygia clark ao construir o ambiente em estúdio no qual caminha o bicho-pau em PHASMIDES , revelado na sequência final. contudo, em situação posterior, criou um dispositivo arquitetônico que se viu confrontado, em uma exposição, com um dos bichos de lygia e com um metaesquema de hélio oiticica.

o contraste entre obras arquitetônicas – e suas linhas retas – e a manifestação forte e de caráter englobante do que conhecemos por natureza – floresta e seus habitantes – aparece em grande parte das obras do artista. também se mostra uma conversa evidente com o legado do concretismo e do abstracionismo, na qual grafismos, construções metálicas e instalações contestam meios de estar e adentrar lugares, de compor formas, de se assimilar.

no contexto da exposição “o que caminha ao lado”, com curadoria de isabella rjeille, PHASMIDES se apresenta ao público em uma pequena sala próximo à área de convivência do espaço. as obras dos outros artistas presentes na coletiva evocam, de distintos modos, imagens ou sons de fantasmas, indícios, semelhantes e dessemelhantes, imitações, vultos. o doppelgänger, antigo mito alemão, provoca a evidência do duplo, ou sua alusão, de modo que limites identitários são postos à prova.

dois anos após sua primeira aparição, PHASMIDES, em 2015, conversa com seus duplos adversos, crianças que correm, bichos, outros fantasmas. sobrevivência de corpo em ambiente, existência em estúdio, linhas retas?

 

Inês Nin
Novembro de 2015.

 

Anexos:
http://danielsteegmann.info/works/21/index.html