O futuro, novamente

Por Carla Zaccagnini

Imagem: frame de The gang’s all here, 1943. Dirigido por Busby Berkeley, 20th Century Fox

 

Introdução – De Estado Novo a País do futuro

‘Brasil, o país do futuro’ é quase um axioma, um enunciado automático, algo assim como ‘Paris, a cidade Luz’ ou ‘Nova York, a grande maçã’; derivações, talvez, das distinções com que se apelidavam os aristocratas: ‘Maria, a louca’, ‘Ivan, o terrível’, ‘Felipe, o belo’. Brasil, país do futuro, título honorário, é originalmente título de um livro, publicado em 1941 pelo austríaco Stefan Zweig, que aqui chegou um ano antes, fugido da guerra e disposto a escrever “o livro brasileiro”, como anunciara em telegrama a seu editor local.

Brasil, país do futuro, o livro, exalta a já notória imensidão do território nacional e de seus recursos naturais, mas louva também as supostas características de seus habitantes que, “sob a influência imperceptivelmente depressiva do clima, desenvolvem menos força impulsiva, menos veemência, menos dinamismo…”. É nessa falta de pujança produzida pelo calor, parece, que reside a promessa de uma “futura civilização” em que a humanidade conviva em paz. Não por uma solução trabalhada ou pelejada das injustiças, portanto, mas por uma dissolução natural das forças, uma espécie de derretimento do vigor.

“Como poderá conseguir-se no mundo viverem os entes humanos pacificamente uns ao lado dos outros, não obstante todas as diferenças de raças, classes, pigmentos, crenças e opiniões?” pergunta-se o autor em meio à guerra, e responde: “A nenhum país esse problema, por uma constelação particularmente complicada, se apresenta mais perigoso do que ao Brasil, e nenhum o resolveu duma maneira mais feliz e mais exemplar do que a pela qual este o fez”.

O autor não vê, ou deixa de lado, o aparato repressor montado pelo Estado Novo, talvez em agradecimento ou pago pelo abrigo no exílio. Difícil considerar exemplar a Policia Secreta de Filinto Müller, que pouco se distinguia, em seus ideais e métodos, de seus pares contemporâneos que se ocupavam de manter a ordem nos regimes totalitários europeus; difícil chamar feliz ao controle ideológico exercido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda, organismo de censura e comunicação oficial, criador da Hora do Brasil. Hora, aliás, que não chega nunca. O Brasil continua sendo o país do futuro, seguido seu nome por essa sentença. Algo entre uma promessa e uma maldição.

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Capítulo I – Evidências de uma farsa: Welcome to Brasil and Rio

Em fevereiro de 1942 Stefan Zweig se suicidou junto a sua esposa, talvez indignado ou culpado pelas acusações de apoio ao governo Vargas que seu livro levantara; talvez decepcionado ao ver seu paraíso de bons selvagens romper relações diplomáticas com os países do Eixo; seguramente cansado da guerra que lhe parecia infindável.

O rompimento da suposta neutralidade brasileira foi definido junto a outros Estados americanos, em reunião no Rio de Janeiro, um mês antes da morte do casal Zweig. Em 22 de agosto de 1942, seguindo uma série de ataques alemães a navios de bandeira brasileira, Getúlio Vargas assina um decreto presidencial em que o Brasil reconhece a existência de um estado de beligerância entre esses dois países.

Dois dias depois, e cinco meses antes do lançamento nos Estados Unidos, estréia nos cinemas cariocas o filme Saludos amigos!, dos estúdios Disney. O filme foi realizado apos visita da equipe à América Latina, financiada pela Agência de Assuntos Interamericanos do Departamento de Estado estadunidense, organismo chefiado por Nelson Rockefeller. E reúne gravações em 16mm registradas durante a viagem e desenhos animados inspirados por quatro dos onze países percorridos. “Enquanto metade do mundo é forçada a gritar Heil Hitler!, nossa resposta é dizer Saludos Amigos!” declarou à época Walt Disney.

O curta dedicado ao país do futuro, Aquarela do Brasil (Welcome to Brazil), tem início com uma folha e um pincel, por sua vez pintado, que traça rapidamente uma paisagem tropical, fauna e flora, ao ritmo da canção homônima de Ary Barroso. Orquídeas, bananas, tucanos e araras; as fontes murmurantes e o coqueiro que dá coco; as formas voluptuosas e as cores vibrantes já sabidas destas terras se solidificam e se derretem sob os gestos de um pincel onisciente ou ao fluir da tinta involuntária, que juntos dão vida a todas as coisas.

Assim nasce também Zé Carioca, nesta sua primeira aparição pública. Desde que se apresenta a Donald Duck, a quem já conhece de nome, e em todo o passeio pela cidade dita maravilhosa, Carioca esbanja a hospitalidade e a espontaneidade, alem de uma propensão como que natural à musica e à dança, que não somente Disney e Zweig, mas também outros tantos estrangeiros incluem em seus relatos de viagem por estas paragens e nas descrições de seus habitantes. Donald só pode mover-se ao ritmo do samba depois de embriagado, quando o corpo, livre das amarras da razão e da cultura, obedece a soluços ritmados provocados pela cachaça.

Blue, o arara da animação Rio (lançada em 2011 por 20th Century Fox e Blue Sky), passa a duração do longa redescobrindo instintos que a vida no exílio lhe castrou e o contato com seu habitat natural lhe permite, ou demanda. Também aqui há uma cena de samba, quando flashbacks do início do filme mostram o pequeno Blue cedendo ao impulso do corpo que segue o ritmo sem escolha, uma aptidão que se repete no adulto. Como se o samba ou essa capacidade inevitável de obedecer à música estivesse impressa no DNA, como se os clichês nacionais circulassem no sangue de par com os leucócitos.

A dicotomia entre Donald e Zé Carioca, a cultura algo engessada e a fluidez do habitante dos trópicos, se repete entre Blue e a fêmea Jewel, com que contracena; mas está também condensada no protagonista.  É justamente uma mescla das habilidades aprendidas dos humanos em seu amado cativeiro em Minisota com uma reativação do instinto de vôo que lhe permite salvar a última arara azul fêmea do planeta.

Esse teor ecológico é o dado novo em Rio. O colorido e as riquezas naturais da introdução, pássaros e flores em dança sincronizada, repetem em ritmo mais frenético o desenho de Disney. Mas são interrompidos pelas armadilhas ortogonais dos traficantes de aves exóticas, bandidos que só serão derrotados no final do filme.

Em uma variante menos infantil das relações entre este país e a ecologia, Gisele Bündchen, a mais requisitada modelo brasileira, foi nomeada Embaixadora de Boa Vontade da ONU, precisamente pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente. Empossada em 20 de novembro de 2009, Bündchen declarou que não imagina infância melhor que a sua, e que precisamos agir agora para que as gerações do futuro [novamente] tenham as mesmas oportunidades que nós.

Gisele Bündchen é, desde 2004, a modelo mais bem remunerada do mundo e a sexta mulher mais rica da indústria do entretenimento. Em 1946, era Carmen Miranda a atriz mais cara de Hollywood e a mulher que pagava os mais altos impostos nos Estados Unidos. A mesma Carmen Miranda que discutiu com Walt Disney o personagem de Zé Carioca e indicou sua irmã para contracenar com o papagaio, o Pato Donald e seu companheiro mexicano o galo Panchito em Você já foi à Bahia? (1944).

A mesma Carmen Miranda que, numa versão menos infantil das relações entre o samba e a Política de Boa Vizinhança, se apresentou no St. Francis Yacht Club, na noite de 26 de junho de 1945, em gala oferecida por Nelson Rockefeller para celebrar o final da conferencia de San Francisco com a criação da Organização das Nações Unidas.

 

Aquarela do Brasil, trecho de Saludos, Amigos!, 1942. Walt Disney Studios.