Bienal do Mercosul: uma tentativa de compreender o movimento espetacular e o modelo expositivo
Imagem: capa do livro Entre Olhares e Leituras: uma abordagem da Bienal do Mercosul, de Gabriela Motta. Porto Alegre: Zouk, 2007, 1˚ edição
O texto parte do livro Entre Olhares e Leituras e se divide em 3 frentes: a primeira contempla o pensamento que levou Gabriela Motta em suas análises e criticas sobre as bienal do Mercosul; a segunda se aprofunda dentre as 5 primeiras bienais; e a última apresenta uma crítica a oitava edição com relação ao projeto pedagógico e à Casa M.
Entre Olhares e Leituras: por onde passa o interesse de Gabriela Motta
Entre Olhares e Leituras uma abordagem da Bienal do Mercosul., livro de Gabriela Motta publicado em 2007 pela editora Zouk, é destinado aos pesquisadores mais assíduos do mercado institucional de arte, principalmente aqueles que lidam com propostas artísticas específicas, preocupados em compreender a relação entre um evento e o espaço que o abriga. Também volta-se aos estudantes determinados a entender o circuito das mega exposições e as dificuldades enfrentadas pelos agentes envolvidos, especificamente artistas e curadores.
Com toda a certeza o conteúdo desse texto apresenta-se como uma tração de mudança, por estar ao lado do artista, com o intuíto de defendê-lo como único agente constituinte para uma história da arte contemporânea. É destinado aos futuros curadores de bienais, aos produtores desses eventos, aos agentes de ligação entre curador, instituição e patrocinador, na intenção de alertá-los para a necessidade de uma mudança ou até ao mesmo uma inferência no sistema hierárquico da arte institucionalmente (má) estabelecida hoje.
Entre Olhares e Leituras é o resultado da pesquisa de mestrado realizada no Instituto de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul por Gabriela Motta[1]. O livro pretende exercer uma análise crítica acerca das cinco primeiras edições da Bienal do Mercosul, baseada especificamente em relatos, críticas da época e entrevistas, que a autora realizou com alguns artistas participantes das mega exposições. As entrevistas foram feitas com artistas que de alguma maneira tiveram ou ainda têm contato expressivo com o contexto da cidade de Porto Alegre. O justificável da pesquisa de Motta é dado particularmente por estabelecer os parâmetros problemáticos de um evento espetacular e a criação de uma fundação para a sua continuidade, juntamente com relação ao atual conhecimento do desfalecimento do mercado institucional da cidade que recebe uma bienal. Para isso apresentam-se questões pertinentes à falta de estrutura, de entendimento da necessidade da produção artística contemporânea por parte da instituição e/ou da própria curadoria. E talvez deixe subentendido a má compreensão da iniciativa privada financiadora – com objetivos consumidores e espetaculares – que faz-se realizar uma prática pública como a Bienal do Mercosul a partir de isenção fiscal governamental.
O procedimento construído por Motta para dispor suas reflexões e apresentar sua pesquisa sobre a Bienal do Mercosul e o descontentamento com o sistema, o circuito e o mercado no lugar que a mantém, foi justamente correspondente a uma tentativa da composição dialética, composta de tese, antítese e síntese, mas que aparentou recusar-se a se dar por concluída, por ter apontado situações problematizadoras durante todo o texto. Em parte, a construção do texto se deu de maneira analítica, já que seu objetivo nos é dado pela introdução. E as críticas ficaram dispostas no decorrer de seu conteúdo.
O Ponto de Partida (capítulo inicial) é a validação da história das mega exposições, a contextualização do Espaço Histórico criado proporcionalmente a outros mega eventos, relacionando o início das bienais com a movimentação social, política e econômica de cada época, baseado na efetividade das bienais mais antigas, como a de Veneza (1895) e a de São Paulo (1951). O segundo, Ponto Nodal, aborda o conceito do ideal em construção do fim do séc. XX e início do séc. XXI de uma Bienal a partir do entendimento de Marc Augé sobre o não-lugar: espaços indefinidos até mesmo quando nomeados como relacionais ou históricos os quais a autora refere-se no texto como Espaço Transitório. O terceiro capítulo, Ponto do Não-Retorno, chega ao objetivo enunciado no começo do texto. As análises nesse momento se dão com base nos dois últimos pontos (de Partida e Nodal), e agora o que importa é o Espaço em Questão, a instituição Fundação Bienal de Artes Visuais do Mercosul e suas realizações iniciadas. O Ponto de Contato é o último e, talvez por sua disposição, recorre às especulações e inquietações dos indivíduos participantes dentre as cinco edições, principalmente no que tange às expectativas e descontentamento desse Espaço Subjetivo, criado pelos artistas e alimentado pela instituição. Por fim, e para fora dos pontos, encontra-se uma rápida conclusão que pretende apresentar algum Ponto Final – ou de Partida, mas que não nos dá nenhuma possibilidade de saída ou reconfiguração das problemáticas apresentadas, porém de uma maneira sintética elogia a continuidade da Bienal do Mercosul no sentido que “a história das exposições de arte é a história das exposições possíveis”. Depois de tudo, encontram-se cerca de cem páginas de entrevistas feitas com mais de vinte artistas, as quais serviram como base estrutural do todo pesquisado, analisado e criticado por Motta.
Mais profundamente, ao manter-se a ordem dos Pontos ou apontamentos levantados pela autora, preferiu-se aqui situar inicialmente as recorrentes Bienais históricas, as mais antigas e por consequência, talvez, as mais estruturadas e influentes de um tal circuito do mercado institucional de arte. Neste âmbito, a Bienal de Veneza, remete-nos particularmente à compreensão inaugural da perspectiva disseminada da indústria cultural. E, por essa exposição de Motta, é possível assim acreditar que mesmo que Adorno pudesse ter nos prevenido ainda nos espanta o exercício contemporâneo da reprodução em série de quantidades absurdas de bienais espalhadas hoje pelo mundo: a contar algumas, como Istanbul, Cuba, Lyon, Bienal del Fin del Mundo (Chile), de Curitiba – VentoSul, Panama, Johannesburgo, Montreal e etc. Este modelo expositivo tinha como pretensão acolher a nova produção de arte do séc. XX, e veremos aqui, que talvez esse seja o maior dos enganos. Para começar pela segunda bienal criada, a de São Paulo, surgida 56 anos após a primeira, mesmo que tardiamente, reapresentou o mesmo modelo da primeira.
Em seguida, Motta levantou algumas características sobre a relação da produção contemporânea de arte e da formação da multiplicidade de bienais. Primeiramente, este levantamento se deu pelo interesse nos mega eventos e em obras de arte com caráter projetual, a fim de mostrá-las com suas características mais próximas a ideia do próprio evento, como uma maneira de efetivar a estética espetacular objetivada. Em segunda instância, levanta-se problemáticas da produção contemporânea e a demanda das curadorias temáticas das bienais, no que se refere especificamente o contato mais aprofundado entre a proposta e a produção, ou melhor, a conversa entre curador e artista. Coisa que hoje talvez ainda não aconteça com muita frequência quando estudamos a constituição de alguns desses eventos. E agora compreendemos melhor o não-lugar de Augé, apresentado por Motta, caracterizando por sua impessoalidade, ou pela comunicação nebulosa.
Nesta percepção, uma bienal não teria nada além de primeiro objetivo a não ser em afirmar sua visibilidade espetacular. A maior quantidade de público possível como meta visível dos respectivos apoiadores financeiros é contrastante à uma possível reflexão qualitativa da arte contemporânea afim de ser exposta. Principalmente no que se refere à imagem de um curador que, de alguma forma austero, poderia responder pela instituição que representa esse modelo de exposição.
Ao começar as análises, Motta preocupa-se em responder rapidamente o significado do nome MERCOSUL, afirmando a tentativa falha, no final da década de 1980, da criação do bloco econômico MERCOSUL – Mercado Comum do Sul – e somente realizado no início de 1990, entre Brasil, Argentina, Uruguai e Paraguai, e que até hoje não apresenta grandes feitos ou realizações. Ao mesmo tempo, como consequência do bloco ou de sua aparente crise prematura, a bienal de mesmo nome realizada em Porto Alegre inaugura sua primeira edição, em 1997. Inicia-se com este comentário o entendimento processual das relações políticas intrínsecas à concepção e continuidade dessa bienal até os dias atuais (8˚edição, 2011) explicado no presente texto.
Rápidas Análises das 5 Primeiras Bienais
Na 1a Bienal do Mercosul (1997), segundo a autora, houve a tentativa por parte da instituição e da curadoria abranger um certo panorama da arte latino-americana no que tangia os olhares para própria região que se instalava, preocupação esta que se relaciona inicialmente com o contexto local. Com curadoria geral de Frederico Morais esta primeira edição tratou de três temas principais para conjurar uma tentativa um tanto complexa: Política, Cartográfica e Construtiva foram as bases, para realizar a retrospectiva de cada país envolvido no evento. Essa edição deu continuidade ao modelo das representações nacionais, já conhecido pela Bienal de Veneza e de São Paulo, porém diferenciou-se pela montagem, dividindo as obras por linguagens. Ainda segundo Motta, tal estratégia causou insuficiência de ligações e não permitiu ao público ver as problemáticas intrigantes entre as possíveis produções. Também, acrescentou-se apenas um país convidado, além dos que integram o bloco, a Venezuela. A tentativa curatorial viria para alterar o modelo expositivo conhecido até então, através da afirmação de uma possível identidade latino-americana a partir das particularidades geográficas. Mas, como toda curadoria temática, reconheceu-se que muitos artistas importantes que ficaram de fora pois, de alguma maneira, não se usavam das três bases para evidenciar a legitimação dessa identidade via representação geográfica. A problemática estrutural mais aparente foi o englobamento dessa primeira edição de treze espaços expositivos distintos, o que acarretou dificuldades na divulgação e ligação entre as mostras e, como consequência, ela refletiu o caráter abstrato da “identidade” a que se direcionava. Nesse sentido, o que podemos refletir é que esta estrutura complexa refletiu a pretensão da instituição, no que se refere ao movimento espetacular, pois integrar treze espaços diz muita coisa com relação aos olhares ao evento, que de alguma maneira causa enorme especulação. Por fim, Motta reclama atenção para os objetivos:
“Dentre as conquistas da I Bienal do Mercosul – existir, revelar novos espaços de exposição, movimentar um circuito local, criar uma estrutura de exibição de trabalhos de arte -, apenas a existência foi mantida.” (MOTTA, 2007: 38)
Ivens Machado (Brasil) – Mapa Mudo, 1979 – Vertente Cartográfica – Usina do Gasômetro – Coleção Gilberto Chateaubriand. Crédito: Edison Vara / PressPhoto
Durante a 2a Bienal do Mercosul (1999/2000) constatou-se situações semelhantes à primeira, como o fato de os curadores do Chile, da Bolívia e do Paraguai terem sido os mesmos. Mas essa edição apresentou mudanças com relação a compreensão da estrutura. Seu orçamento foi relativamente reduzido, fazendo com que ela se dividisse apenas entre quatro mostras, além das exposições de cada país, contabilizando aí o Museu de Arte do Rio Grande do Sul com “Picasso”, “Cubismo” e “América Latina”; Usina do Gasômetro com “Arte e Tecnologia” e “Julio Le Parc”; e a descoberta dos armazéns do Deprc[2] (Departamento de Porto, Rios e Canais, hoje extinto). Ela se destacou por ter sido pensada na direção da arte contemporânea. E caracterizou-se melhor por não apresentar tema e por ter uma curadoria dupla, capaz de chamar a atenção para o interesse político e econômico da instituição. A curadoria geral de Fábio Magalhães, entendida, pela leitura do livro, como de caráter executivo, angariou interesse político para a própria continuação do evento, já que certa crise econômica havia se abatido sobre ela após sua primeira edição. Essa atuação se deu pela experiência em politica cultural do curador, sendo fato conhecido que ele ocupou diversos cargos políticos no âmbito cultural. A consequência foi frutífera, pois pareceu ter consolidado a continuidade do evento até hoje. Do ouro lado, correspondendo à ideia de duplicidade apresentada anteriormente, estava a co-curadora – conhecida por sua pesquisa em arte latino-americana – Leonor Amarante que foi quem fez o contato e a seleção dos artistas, trabalhos e propostas apresentas para essa bienal.
Relato jornalístico do incêndio dos armazéns Deprc, em Porto Alegre
No que diz respeito à terceira edição (2001), foi possível identificar uma situação correlatas ou quase que consecutiva de sua realização. A curadoria foi mantida nas mãos de Fábio Magalhães, mas quase completamente realizada, no que podemos compreender por exercício curatorial, pela co-curadora (ou curadora adjunta) Leonor Amarante. Esta predisposição rendeu a Amarante certa vontade experimental, justamente pela criação do espaço “alternativo”[3] conhecido como “Cidade dos Containers”[4]. Além da criação deste espaço, outros nos foram revelados, como a então recente abertura do Santander Cultural e sua consequente participação da bienal com a exposição “Poéticas Pictóricas”, o Hospital Psiquiátrico São Pedro com “Performances” e os conhecidos MARGS e Usina do Gasômetro que completavam a mostra. Mesmo com a continuação da direção à arte contemporânea nessa 3˚ Bienal do Mercosul, percebeu-se forte desconexão entre as diferentes mostras do evento. Ou melhor, segundo Motta, as exposições dos artistas “Edvard Munch”, “Diego Rivera”, do dinamarquês “Tal R” e de alguns artistas chineses contemporâneos levantou certos questionamentos em relação aos objetivos deste evento, já que as realizações, não puderam interagir com produções latino-americanas. Podemos creditar desse modo que não foi possível levantar críticas sobre a importância da cidade receber tal produção diversa a já apresentada nas edições anteriores, mas podemos agora ao menos especular que tais decisões tiveram aparato de interesse estrito econômico e político, pois relembra-se que o endinheirado Jens Olense[5] representou, nessa edição, a coordenação de todas essas mostras simultâneas a convite de Fábio Magalhães. Nesse momento do texto da autora podemos começar a compreender a tal relação de importância política que a personalidade de Fábio Magalhães representou após a primeira edição desta bienal. Mas voltando à criação dos “paralelepípedos brancos”, a tal “Cidade dos Containers”, Motta levantou uma inquietação relacionada ao conceito. A “Cidade do Containers”, entretanto, apresentava caráter modernista relevante a contribuições do conhecido “cubo branco”, e por isso não pôde criar favoravelmente certa liberdade projetual aos artistas convidados ou interessados na especificidade desta parte da mostra, além de claramente não ter tido capacidade de causar fricção entre as obras envolvidas no mesmo espaço. Pois bem, pelos fatos ocorridos e pelas análises de Motta até o momento, talvez a única percepção que possamos ter da pretensão da criação desse espaço seja de maneira a possibilitar o melhor entendimento do não-lugar de Augé. Ou seja, poderíamos dizer que a Cidade dos Containers e a desconexão das mostras paralelas com o todo apresentado dessa edição representa a imagem deste conceito, apresentado pela autora para significar o fenômeno do modelo expositivo do tipo bienal.
Pintor – III Bienal do Mercosul
A 4a Bienal do Mercosul (2003) marcou, de certo ponto de vista, um momento transitório para com as próximas exposições, ela foi a primeira depois das três anteriores que, embora casualmente, apresentou um modelo expositivo diferenciado. Não se baseou em divisões por analogia de linguagens, mas sim por subdivisões para cada país representado no evento. A mostra apresentou os países já relacionados ao bloco MERCOSUL, convidando o México, apresentando cada um com sua mostra nacional e com um artista de renome histórico do próprio país e também três mostras icônicas[6]. Com curadoria geral de Nelson Aguilar o tema teve o nome de “Arqueologias Contemporâneas” e ficou conhecido pelo slogan criado pelo designer Chico Homem de Melo para divulgação do mega evento, “A arte não responde perguntas”. De acordo com Motta, toda essa edição foi muito bem pensada principalmente por ter apresentado mostras documentais essenciais para o tema e por ter deixado acontecer muito bem a fruição e fricção entre obras de diferentes países. Algo que não havia ocorrido em nenhuma das exposições anteriores. O único espaço “novo” descoberto pela instituição para realização da exposição foram três armazéns do Cais do Porto, que já eram conhecidos pela cidade, por conta de eventos de entretenimento anteriores a bienal. Além de tudo, conforme as afirmações de Motta, esta quarta edição pôde caracterizar-se por transitória no sentido de que mesmo apresentava uma quantia significativa de artistas estrangeiros (12) – percebidos pela curadoria de Alfons Hug na “mostra transversal”[7] – logrando assim alcançar reflexões relevantes à América Latina. Mas problematizou ainda mais suas questões já conhecidas, o que talvez tenha feito jus ao seu slogan oficial, sobre isso Motta discorre:
“ Ao falarmos sobre identidade cultural, é preciso uma acepção mais ampla do que a ideia regionalista, presente em boa parte das teorias desenvolvidas pelos centros tradicionais, em relação às culturas do países periféricos. (…) A complexidade da formação de uma identidade latino-americana precisa ser entendida para além do momento histórico dos descobrimentos, porém levando-se em consideração a forte influência do olhar estrangeiro no imaginário nacional solapado. A permeabilidade e a hibridação com outras subjetividades é uma característica da cultura em geral, e em especial da cultura latino-americana, que pode ser observada na troca ininterrupta, e talvez pouco equilibrada, entre estrangeiro e o nacional. Além disso, assim como não se fala em uma identidade europeia pelo notório saber das especificidades dos países que compõem o velho continente, da mesma maneira é fundamental perceber individualmente os países que formam a América Latina.” (MOTTA, 2007: 56)
Mas o caso criado por esta mostra não necessariamente comparece com tanto espírito crítico, a lembrar que a mostra transversal somente ocorreu justaposta a outras exposições do evento, espalhando obras por toda bienal, pois não houve de antemão a contribuição da instituição para pensá-la em um lugar pré determinado. No sentido que o próprio curador havia pensado a exposição para acontecer em um mesmo espaço. Ou seja, ao nosso ver, quase que sem querer essa mostra acaba por resolver certos descontentamentos criados pelas três primeiras bienais, pois além de criar instigantes relações complexas entre obras de diferentes contextos, também concerniu um olhar direto à obra de arte. E ainda, em nossa análise, essa edição apresentou melhor a impossibilidade de repensar uma tal identidade para a América Latina. Tanto pelo fato de que não é possível nos valer de tal validade crítica quando este está diretamente ligado a uma casualidade e quanto pela pretensão do alemão Alfons Hug de creditar a identidade latino-americana à influência de “artistas viajantes” a parir do poema “O Delírio do Chimborado” de 1823, (título da “mostra transversal”) de Simon Bolívar.
Logo da 4ª Bienal do Mercosul – Rótula da Entrada de Porto Alegre ao lado do Monumento do Laçador. Crédito: Acervo NDP – FBAVM
Com relação à última bienal analisada por Gabriela Motta, é possível dizer que a quinta edição (2005) obteve uma relevância outra, que não somente a de conceitos expositivos ou experimentações. Conforme a autora, esta edição carregou certa “transformação do espaço institucional”[8] que não poderiam ter sido concebidas nas últimas mostras. Com curadoria geral de Paulo Sergio Duarte esta quinta edição obteve um caráter quase por completo didático, segundo Motta:
“Apesar da grande quantidade de obras, e da extensão da mostra, esta quinta bienal talvez possa ser considerada a edição do evento onde mais era possível perceber – … – as intensões da curadoria (…) a Bienal funcionava mesmo como uma aula, onde era possível perceber o encadeamento histórico das experiências artísticas dos últimos 60 anos.” (MOTTA, 2007: 64)
O título, “História da Arte e do Espaço – construção e expressão nas experiências de espaço na arte contemporânea”, dava canal para outras quatro subdivisões, as quais “Da Escultura à Instalação”, “Transformações do Espaço Público”, “Direções no Novo Espaço” e “A Persistência da Pintura”, além de outras quatro mostras correlatas ao nome principal. Nesse sentido, apenas pela leitura dos títulos das mostras, pode-se perceber certa preocupação com a discussão especifica sobre a decorrência da produção contemporânea (em relação à arte moderna) de arte juntamente com sua influência no espaço que a abriga. Esta bienal foi a primeira que se diferenciou significativamente das anteriores, pois pretendeu esquecer as divisões de obras por países. Mesmo assim algumas formas foram mantidas, no que se refere às conformações por linguagens, como experimentações históricas em pintura em um único espaço, e novas tecnologias em outro. Mas acreditamos aqui que a transformação do espaço institucional talvez diga melhor respeito à mostra paralela, mas nem por isso desconexa, Fronteiras da Linguagem, que apresentava apenas artistas que, em nacionalidade, não participavam dos países do MERCOSUL. Para Motta, a importância desta exposição se deu basicamente na intenção crítica institucional que apenas os seus seis trabalhos apresentavam, pois pôde nos fazer relacionar reflexões sobre a própria bienal. Para melhor exemplificar, The Empty Museum (1993) da dupla Ilya e Emilia Kabakov, trabalhou com uma sala expositiva institucional completamente vazia, preenchida somente com luzes direcionadas às paredes – aquelas que estamos acostumados a perceber por cima de pinturas e fotografias em museus – e com ar-condicionado ligado em uma temperatura sem o mínimo de oscilação, referindo-se à temperatura ambiente controlada, utilizada por museus para manter as obras em seu estado de manutenção. Já em nosso ponto de vista, o patamar da crítica institucional da obra da dupla pode levar-nos para muitos campos da discussão de certa valia de preservação documental. O que deve ser conservado e o que sequer deve ser cogitado guardar?. Ou melhor, o trabalho pode ser interpretado em uma relação estreita com o contexto em que aparece na bienal, a fim de questionar a falta de lugar físico da Fundação Bienal do Mercosul, sua falta de acervo público (tanto documental como de registro de sua história).
Ilya e Emilia Kabakov. The Empty Museum, 1993 (Instalação). Construção de uma sala, auto falantes com som da obra Passacaglia de J. S. Bach.
Perceber a recente edição junto ao seu momento – 8a Bienal do Mercosul
A oitava edição apresentou diferentes modos de se fazer uma exposição e interesse corrente com no contexto da cidade que a abriga. Porto Alegre recebeu duas interferências significativas, uma literalmente visual e experienciável e outra de essência participativa cultural, todas as duas com importância para o público local. Em ordem, a curadoria de Cauê Alves, “Cidade Não Vista”, em que foram apresentados nove trabalhos de arte que se preocupavam com o espaço urbano, ou que pudessem se relacionar com alguns outros espaços histórico/culturais da cidade de maneira diversa à ideia de intervenção urbana, possibilitou novas experiências aos visitantes. Também foi criado um espaço novo, que iniciou suas atividades em maio do mesmo ano, quatro meses antes da abertura oficial, e continua sua atividades por mais algum tempo após o encerramento. A Casa M, tem curadoria de Fernanda Albuquerque e movimentou, antes e durante o mega evento, muitos interessados nas artes, além da própria vizinhança que a cerca. Em palestra sobre a 8a edição com Cauê Alves no Centro Universitário Belas Artes de São Paulo, a partir de perguntas do público, foi possível constatar que a casa dispenderia cerca de um milhão de reais ao ano, apenas para manter suas atividades à toda prova, e talvez por isso esteja difícil conseguir um patrocinador permanente para o projeto. Mas, na realidade, a dificuldade não é por completa a relatada. Talvez se encontre aí justamente uma falta de conscientização por parte da instituição que se propõe a construir projetos mais próximos da cidade (e do público) com maior duração e com preocupação de formação a longo prazo. Fato que pode ser percebido hoje com o boom dos projetos educativos, no que se refere à quantidade de dinheiro investida nas perspectivas mediáticas de uma bienal.
Ou melhor, também em recente entrevista com a autora do livro resenhado, lembramos de certas despreocupações antigas para com a equipe educativa, por parte da curadoria e a falta de sintonia com a pré, produção e pós do evento. Dito aqui sobre uma discussão largamente empregada hoje, no que diz respeito à transversalidade de educativos por todo o decorrer processual de uma exposição. O que tem sido percebido atualmente é uma certa autonomia, já pertencente a curadoria, conquistada hoje pelo educativo, e declarada por seus projetos pedagógicos. Fato percebido com a presente curadoria pedagógica de Pablo Helguera nesta 8a edição. Mas o que se constata é a falta de interferência ou influência do educativo dentro de conceber os projetos. Nesse caminho, podemos perceber que o erro não esteja em apoiar fortemente tal produção para mediação (projeto pedagógico), mas sim como eles possam estar sendo realizados, ocorrendo nas mesmas instâncias de despreocupação dos mega eventos. Assim, até mesmo o educativo toma proporções espetaculares sem ao menos tomar contato com experiências anteriores ou posteriores, e somente existindo na duração real de uma bienal. É obvio que não se trata aqui sobre a preparação dos prováveis mediadores, pois é sabido que todos desta 8a edição passaram por enormes formações anteriores ao evento, dentre cursos, palestras, leituras, discussões e etc. Trata-se de um projeto que pense o antes e o depois, constitua-se de maneira a voltar-se os olhares para as escolas, sem somente aumentar o número de visitantes da bienal a cada dia, enchendo as salas com enorme quantia de crianças, mas com um projeto pedagógico que aconteça continuamente, antes e depois, ao pouso da bienal. Talvez uma combinação muito interessante podesse ser pensada, entre esse projeto pedagógico idealizado aqui e a livre movimentação da Casa M, dentre as pausas das bienais. Nesse sentido, poderíamos pensar em uma interação concisa entre as partes, na qual parcela do funcionamento da Casa pudesse voltar atenção não só a receber tal público do projeto pedagógico, mas sim desenvolver discussões autorreferenciais a uma ideia do todo histórico e contemporâneo que a bienal traz com seu conteúdo apresentado a cada edição.
[1] Gabriela Kremer Motta é curadora, crítica e pesquisadora em artes visuais. Doutoranda em história, crítica e teoria da arte pela ECA-USP, integra, como curadora, a equipe do programa Rumos Itaú Artes Visuais 2011/2012. É gerente artística da Galeria Ecarta e professora do curso de gestão cultural da Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Realizou, entre outras, as exposições Convivência Espacial (em Recife e Porto Alegre, 2010) e Campo Coletivo (São Paulo, 2008). Motta conclui, em 1994, na cidade de São Leopoldo, o curso de publicidade e propaganda na Universidade do Vale do Rio dos Sinos. Em 2004, responsabiliza-se, em Porto Alegre, pela curadoria da mostra Contemporão. No ano de 2005, obtém o título de mestre em artes visuais na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Em 2006, atua como curadora das mostras Câmara Rasgada e Conjunto (1) e (2). No ano seguinte, com o apoio financeiro do Fundo Municipal de Apoio a Produção Artística e Cultural de Porto Alegre, publica, através da Editora Zouk, o livro Entre Olhares e Leituras: uma abordagem da Bienal do Mercosul.
[2] Os armazéns do Deprc, um dos quatro espaços utilizados, e maior descoberta da 2˚ Bienal do Mercosul, sofre um incêndio um ano após o fechamento do evento. Não se sabe até hoje por quais motivos, não se sabe a procedência, se criminosa ou acidental. Mas detectou-se a importância desses armazéns para bienal, pois talvez pudesse ter sido um lugar em que a bienal pudesse existir em continuidade para com a cidade e simultaneamente para com futuros eventos. Talvez um lugar permanente da instituição bienal.
[3] A escolha de utilizar a expressão “alternativo”, principalmente entre aspas, diz respeito a tentativa de significar um outro modelo expositivo, por vezes experimental, mas aqui na intensão apresentar certa saída expositiva após a descoberta e súbito falecimento dos armazéns do Deprc por parte da 3˚ Bienal do Mercosul.
[4] MOTTA, Gabriela. Entre Olhares e Leituras: uma abordagem da Bienal do Mercosul. Porto Algre: Zouk, 2007, 1˚ edição, pg. 50. Para explicar melhor o contexto da criação desse espaço a autora descreve: “ A ideia de uma Cidade de Containers foi executada pela primeira vez e pelos mesmos curadores, para uma exposição chamada Arte através dos oceanos, 1996, em Copenhaguen. O projeto de Fábio e Leonor buscava oferecer aos artistas um espaço absolutamente igual para realização das obras, além de pretender também transformar os containers, normalmente utilizados para o transporte de obras, em protagonistas da exposição. Aliados a esses objetivos, segundo os curadores, a Cidade dos Containers vinha embalada por um mesmo conceito, que era o branco.”
[5] Agente cultural e empresário que teve grande importância durante a década de 1990 no Brasil por ter realizado diversos eventos do mesmo gênero.
[6] As três importantes mostras: a transversal O Delírio do Chimborazo, a especial Arqueologia Genética e a história Arqueologia das Terras Altas e Baixas.
[7] A mostra O Delírio do Chimborazo pretendeu exercer relações entre os países latino-americanos trazendo a imagem de Simon Bolívar e, logicamente, calcada no que ela carrega, a luta pela liberdade da América do Sul.
[8] MOTTA, Gabriela. Entre Olhares e Leituras: uma abordagem da Bienal do Mercosul. Porto Algre: Zouk, 2007, 1˚ edição. Capitulo 3, subtítulo “A V Bienal do Mercosul e a Transformação do Espaço Institucional”.