Estado Expositivo

Imagem: Folha de rosto do Tratado de Asunción

 

A Bienal do Mercosul é uma mostra de arte complexa. Realizada em volta do centro histórico Porto Alegre nos anos ímpares, é ancorada em uma exposição feita dentro de cinco galpões localizados no cais do porto, à beira do Guaíba. Gravitando em torno desta exposição estão vários projetos. “Cidade não vista”, intervenções espalhadas pela cidade, interessada em obras que incentivem novas maneiras de perceber seus arredores. Outras duas grandes exposições se encontram nas proximidades do cais, uma no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli (MARGS), e uma no Santander Cultural. Para esta edição a equipe curatorial integrou curadoria e ação educativa, tendo como grande foco a criação da Casa M, um local destinado a encontros, pesquisas e debates. Como se pode ver, não é uma mostra pequena ou fácil de se analisar em nenhum sentido.  Aqui me atenho apenas a dois aspectos: a exposição “Geopoéticas”, no Cais do porto, e a Fundação Bienal do Mercosul enquanto instituição latino-americana.

 

ZAP

Uma primeira visita rápida pelo cais traz a sensação que estamos em um museu de história voltado a histórias nacionais, com bandeiras, moedas, hinos, selos, mapas e outros objetos e imagens representativos de nações. Nações fictícias, micro-nações, povos não reconhecidos enquanto nação, e todo tipo de ação em torno da idéia de legitimação nacional. Disso nasce uma questão fundamental tanto aos artistas quanto à curadoria: como instalar aparatos tão grandes como estados-nações dentro de uma exposição? Como se referir a mecanismos sócio-políticos sem se tornar ilustrações destes?

A curadoria desta edição, capitaneada por José Roca, resolveu esta questão criando o que chamou de Zonas de Autonomia Poética, ou ZAPs. Containers localizados nas portas dos galpões, as ZAPs “se estabelecem em pequenos territórios simbólicos”, resultando em instalações que pertencem menos à América Latina, ao Brasil, ao Rio Grande do Sul e a Porto Alegre e mais ao continente Bienal do Mercosul. Entre elas, recorto duas muito distintas, até mesmo antagônicas: o coletivo Irwin e Sealand.

Uma das soluções propostas é trazer partes destes aparatos citados acima. O coletivo Irwin produziu no cais o braço diplomático da nação NSK – Neue Slowenische Kunst, uma embaixada funcional. Sem pré-requisitos, qualquer visitante no dia de abertura poderia requerer seu passaporte do país, cujo nome em alemão significa “Nova Arte Slovena” e conhecer sua história através de vídeos, imagens, selos, moedas… Para os artistas, o passaporte tem uma ideia definida dentro da política atual:

“No processo de globalização que ocorre agora, toda pessoa é um cidadão global… Nós, como cidadãos globais, podemos nos comunicar e interagir com o outro e o passaporte [NSK] é um meio ou ferramenta para re-imaginarmos o que podemos fazer”[i].

Re-imaginarmos e levarmos um souvenir para casa. A nação NSK se comporta com uma lógica de parque de diversões, com uma interatividade superficial que se limita a sorrir, tirar foto e vê-la no passaporte, pegar o cartão de visitas de uma embaixada; o mesmo modus operandi turístico de montanhas russas que fazem retrato de rostos deformados –ou entediados- a ser esquecido em alguma gaveta.

NSK também não funciona como proposta política. A sua invenção não se dá a partir de uma idéia política que satisfaz carências, indica diferenças ou une um povo, mas sim em função de identidades já legitimadas. O próprio nome da nação já explicita que é eslovena, que é direcionada à arte e não uma intervenção com intenção de consequências na geopolítica.

O principado de Sealand, que é ilustrado em uma belíssima e generosa imagem aérea na contracapa do catálogo, é peculiar. Sua criação nunca intencionou ser objeto de arte, mas a presença dela em grandes exposições que discutem a situação geopolítica é quase garantida, como relata sua majestade, o Príncipe Michael Bates. Seu pai, Príncipe Roy Bates, fundou o país quase por acidente, ao se mudar para a costa britânica a fim de fazer transmissões de rádio pirata sem estar sujeito à fiscalização britânica. Ao ser coibido, simplesmente se mudou para mais longe da costa, em alto mar, águas internacionais. Formalizando sua nação, Roy teve acesso a cadeiras representativas no parlamento de nações aliadas, direito à requisição de reconhecimento (e, em seguida, fundos) junto a órgãos internacionais como a Organização das Nações Unidas (ONU) e o Fundo Monetário Internacional (FMI) para organizar a infra estrutura de uma nação subdesenvolvida. É o trabalho de um membro da família real, que se sacrifica para “dar o melhor à sua população, que flutua entre 5 e 22 habitantes”[ii].

 

Fotografia aérea de Sealand

 

No polêmico ensaio Art without artists?, publicado em maio de 2010, Anton Vidokle denunciou algumas práticas curatoriais que acabavam por minar o papel do artista na arte contemporânea. A primeira listada, o “overreaching”, incluir em exposições de arte elementos que claramente não se comportam e não podem ser entendidos enquanto arte, em um momento de distração, onde se esquece os fundamentos do sistema de arte, criando frankensteins culturais, como a participação de Ferran Adrià, chef gastronômico, na Documenta de 2007. Sealand, a princípio, está longe de ser um projeto artístico, feita como reação ao sistema jurídico britânico. Para a geopolítica, é claramente anedótica, não funciona em nenhum sentido como uma nação, existindo apenas por exclusão à soberania de qualquer outro Estado. Mas esta anedota vive no mesmo cenário político que se esforça para entender –seriamente- questões como o separatismo Basco, a independência de Taiwan, e a criação do Estado da Palestina, entre outros. Apesar de não ser uma pesquisa de arte –e muito menos formal-, Sealand é uma ação que escancara o funcionamento de importantes aspectos da sociedade contemporânea, possibilita novos entendimentos de sociedade e, por fim, se adapta ao ambiente expositivo e acaba por inserir isto no núcleo do seu funcionamento como ferramenta primária de divulgação e legitimação. Em entrevista o co-curador Cauê Alves afirmou que havia planos de apresentar a nação Palestina, cancelados pela situação instável do país durante as fases finais desta negociação.

 

Geopoética

A noção trazida por muitos dos artistas parece não ter acompanhado as mudanças na geopolítica acontecida nos últimos 40 anos. A impressão é de onipresença: bandeiras, moedas, mapas –representações gráficas de territórios-, desde trabalhos explícitos como as formigas comedoras de bandeiras em América, 1994, de Ynagi Yukinori até em nível mais conceitual como nos músicos de Eduardo Aragón, que tocam seus instrumentos em pontos fronteiriços em Tinieblas, 2009.

Isso é curioso, se não preocupante, dado que foi justamente quando a geopolítica ocidental foi reconstruída: após a queda do muro de Berlim e, mais recentemente, após os ataques aos Estados Unidos em 11 de Setembro de 2001. Especialmente após este último. Quando George W. Bush responde à carência de liderança de sua nação em crise, fica evidente que a idéia de Estado-nação definida pelos conceitos tradicionais de território e identidade cultural perderam sua força para uma representatividade internacional, fluida e descentralizada. É a primeira vez que uma guerra é declarada a um algo que não é um Estado, mas sim o conceito, uma idéia, a guerra ao Terror.

O percurso lógico seguido por Bush é o de revisar o que define uma nação. Em seu discurso, ao invés de se ater às convenções e atacar Estados-nações, declarando guerra aos países onde se localizavam àquele momento –Afeganistão, Iraque- ou a características culturais que discriminariam sem qualquer precisão um fator cultural que os identifica –fundamentalistas islâmicos, mundo árabe-, definiu por um conceito que traz consigo a mobilidade atual e a dificuldade de identificar como um povo[iii]. Esta lógica é almejada no projeto curatorial, que conta com divisões dos trabalhos em blocos temáticos: democracia/república, fronteira, discurso/história, cartografia/política, entre outros. Porém uma leitura à risca deste projeto leva à conclusão que divisão torna a interpretação de obras em um processo de exclusão, não podendo nenhum trabalho pertencer a dois ou mais destes blocos.

Sanna Kanisto tem explicitamente a questão do conflito em seu vídeo Bee studies: orchid bee males, 2004. Por colocar uma placa de petri com essências de orquídea em um lugar com ao menos três variedades de abelhas, ela cria um objeto de interesse de machos, que logo vão disputar por aquele recurso. A artista incita e registra o conflito em torno de um território, com mostrando todos os códigos envolvidos nele: danças territoriais, ataques físicos, alianças entre semelhantes. Estes conflitos parecem simples ao observador porque são momentâneos: o vídeo é curto, as ações são rápidas aos nossos olhos, até mesmo o objeto de interesse das abelhas poderia se esgotar brevemente. Mas isto se trata de uma disputa por recursos essenciais ao funcionamento das comunidades de abelhas. Fossem humanos, estas não fariam danças com os próprios corpos, mas paradas militares com jatos cortando os céus e tanques nas ruas, bandeiras em todo lugar, uniformes para cada nível hierárquico da sociedade militar, todo tipo de símbolo. Onde, então, se localiza este trabalho: galpão A5, parte dele dedicada ao conflito, ou no setor dedicado aos símbolos nacionais do galpão A6, indicando a origem destes? Talvez no A4, como a gênese da Fronteira, lugar onde acaba a sua soberania e começa a minha.

 

Frames do vídeo Bee studies: orchid bee males, 2004 de Sanna Kanisto.

José Roca e convidados em frente ao vídeo de Sanna Kanisto

 

Jatos, tanques, bandeiras e uniformes foram vistos nas ruas de Porto Alegre pouco antes da abertura da exposição, nos desfiles de 7 de Setembro. O Brasil comemorou a conquista da sua soberania com os símbolos reconhecidos por possíveis concorrentes, mesmo não participando de nenhum conflito armado. Só para deixar bem claro quem manda neste pedaço de terra. O mesmo fez Manuela Ribadernera, em Hago mio este território, 2007, apunhalando uma parede. O território conquistado não tem qualquer garantia natural de não ser atacado, necessitando a criação de símbolos que façam a manutenção da soberania. A faca na parede é uma representação do conflito, reação inevitável à ameaça. Funciona como um alerta, tanto como uma prévia do que espera o invasor, quanto um conselho irônico: se você vai entrar aqui, é melhor entrar armado. Esta é uma das necessidades de uma fronteira inequívoca, de um código comum que indique os territórios, a mediação pretendida por mapas geográficos, desde os poéticos mapas do séc. XVI até satélites GPS.

Mas, como já dito, a noção do limite de territórios ganhou flexibilidade no mundo contemporâneo. André Komatsu apresenta duas obras de uma série que trazem este conceito para a escala arquitetônica e até mesmo corporal: O estado das coisas 1 e O estado das coisas 2[iv]. O primeiro se trata de romper com as barreiras, materializações físicas da fronteira. Uma parede construída entre duas vigas de sustentação do galpão reforçaria a fronteira, uma ótima oportunidade expográfica de divisão entre temas. Mas o artista escancara a permeabilidade desta barreira física, erguendo parte do muro a uma altura apenas sugestiva. A segunda obra questiona qualquer fronteira. Uma mesa redonda com em seus pés rodinhas e aparafusados a seu tampo quatro ventiladores ligados. A mesa gira descontroladamente pelo espaço, limitada apenas pela fonte de energia, uma tomada que vai até o teto. Seu território não é limitado ao seu corpo físico, mas sim ao grande raio de ação potencial deste; apesar de grande, só é ocupado em partes e durante curtos períodos, ficando ocioso a maior parte do tempo. Em uma infelicidade da produção, a obra teve que ser retirada porque não funcionava naquele ambiente: o chão é tão involuntariamente rugoso que não deixava o movimento livre ser realizado, impondo sutilmente a ele fronteiras em todos os lugares.

 

O estado das coisas 1, 2011, André Komatsu

O estado das coisas 2, 2011, André Komatsu

Fundação

A Bienal do Mercosul, como aponta José Roca, é curiosamente a única Bienal do planeta que empresta o nome de um bloco econômico, contrariando a norma de colocar os holofotes na cidade na qual é baseada. E olha que existem centenas de bienais. De onde exatamente vem o nome da Fundação, então? Qual é ou quais são os elementos que fundamentam esta escolha?

Talvez a relação geográfica seja indireta, tendo o Mercosul alguma relação com Porto Alegre? Não exatamente. O Mercosul é resultado do Tratado de Asunción, acordo originalmente feito entre Argentina, Brasil, Paraguai e Uruguai, que define a sede administrativa em Montevidéu[v]. As capitais do Paraguai e do Uruguai foram preteridas em função da capital do Rio Grande do Sul. Portanto a escolha não tem apoio, tampouco é fundamentada na política formal.

Por se tratar de um bloco econômico, outra associação imediata é que o financiamento pode ter vindo principalmente do próprio Mercosul ou diretamente dos Estados signatários, em um investimento conjunto com algum fim comum –legitimação frente a outros blocos por meio da cultura, compreensão dos interesses sociais comuns ou qualquer outro. Uma rápida pesquisa atesta que, felizmente (?), a lógica “se eu pago, eu assino” não foi aplicada. Na primeira página dos catálogos desta edição e da anterior vemos o nome de duas grandes empresas industriais como patrocinadores master (uma estatal e uma privada, ambas brasileiras), dois órgãos públicos gaúchos como financiadores e o Ministério da cultura brasileiro como realizador. Economicamente, a Bienal do Mercosul é inegavelmente brasileira.

As curadorias gerais podem, então, ter sido feita apenas por latino-americanos, não fosse a sua 6ª Edição assinada pelo espanhol Gabriel Pérez-Barreiro. Ainda assim, é o aspecto que mais se aproxima, dado que Pérez-Barreiro é pesquisador de arte latino-americana, especialmente focado na Argentina com seu doutorado em Arte Madí pela inglesa University of Essex.

O artista homenageado é sempre latino-americano, pelo menos? Sim! Um argentino, seguido de cinco brasileiros, um ano sem artista homenageado e um chileno nesta edição. Brasil mais hegemônico que isso só encontramos no futebol de areia.

Historicamente, esta Bienal foi criada como uma exposição de arte voltada a representações nacionais dos países signatários do Mercosul, tendo aceitado outros países a partir de sua 5ª edição.[iv] Patrocinada principalmente pela onipresente Petrobrás e pela gaúcha Gerdau, não possuía qualquer relação formal com quem pegou o nome emprestado –e continua assim. As políticas giram em torno do Brasil, em especial uma tensão –totalmente legítima- de afirmação intelectual fora do eixo RJ-SP.

Enquanto instituição, a Bienal do Mercosul é um evento que se diz trazer à luz, tornar claro, mas acaba por confundir e obscurecer mais ainda o bloco econômico, em mais um gesto de liderança imperialista exercido pelo Brasil dentro da América Latina.

 


[i] http://congress.nskstate.com/ – site do congresso NSK. No original: “In the globalisation process that’s occurring right now, every person is a global citizen… We as global citizens can communicate and interact with each other and the [NSK] passport is a medium or tool for us to re-imagine what we can do.”.

[ii] Como afirmado em entrevista na prévia de imprensa da Bienal do Mercosul pelo próprio Michael Bates.

[iii] Esta é uma análise da lógica do discurso de Bush, não da história dos fatos. Distinguindo idéia de ação, boa parte do militarismo norte-americano foi imediatamente direcionado à ocupação do Afeganistão e do Iraque, em uma caça às bruxas que teve seu primeiro grande marco na execução de Saddam Russein. O único índice de que a chamada guerra ao terror de fato seguiu esta lógica foi em 1º de Maio de 2011, com a execução de Osama Bin Laden, considerado o líder do terrorismo global e mentor dos ataques ao World Trade Center, realizada em uma operação militar na qual o exército norte-americano invadiu o Paquistão, seu aliado, para tomar de assalto a casa onde o terrorista se encontrava.

[iv] A série O estado das coisas é composta por três trabalhos. A terceira obra desta série esteve exposta na Bienal do Mercosul, mas pinço apenas duas delas para ter mais precisão na análise.

[v]  Tratado de Asunción, disponível no site oficial do Mercosul: http://www.mercosur.int/innovaportal/file/655/1/CMC_1991_TRATADO_ES_Asuncion.pdf

[iv] Site oficial da 5ª Bienal do Mercosul http://www.fundacaobienal.art.br/novo/index.php?option=com_bienal_anterior&task=detalhe&Itemid=1387&id=35