Edwin Sanchez: Arte e política longe do “bom mocismo”

Imagem: Inserción en circuito ideológico #1, 2010. Edwin Sanchez


            A relação entre arte e política é vista com frequência  na produção artística latino-americana – e se podemos falar em uma “arte latino-americana”, acredito que essa relação seja seu ponto mais marcante. Em decorrência das últimas bienais, o tema “Arte e política” gerou diversos questionamentos, entre eles a ideia de que toda arte é política pois possui o contexto no interior de sua criação, ou seja, a arte é parte do sistema de objetos e imagens produzidos  pelo tempo e espaço que a origina. No entanto, nos resta questionar, por que classificamos certos trabalhos como “políticos”? O que faz um trabalho “político”? São perguntas estas, que não pretendo responder mas ampliar a discussão sobre o próprio conceito de “política” dentro da arte. Neste texto, trago a obra do artista colombiano Edwin Sanchez, a fim de explorar o tangenciamento que a relação entre arte e política também possui com questões morais e éticas.

Formado em desenho industrial pela Universidad Jorge Tadeo Lozano em Bogotá e mais tarde em Artes Visuais pela mesma universidade, Edwin Sanchez atua em um contexto legitimamente latino, onde as fronteiras são tão evidentes e ao mesmo tempo tão difusas. Fronteiras estas, resultantes de um contexto sócio-político de desigualdade, conflito e corrupção – visto em grande parte da America Latina e em sua história. O lugar da arte e da política é nessa história e esta história é o que nos une.

Em uma situação de dualidade entre arte e crime, legal e ilegal, Edwin Sanchez trabalha estreitamente com seu contexto, assume e vivencia situações e personagens próprios deste. Edwin justapõe os papéis de artista e deliqüente, assumindo ações destes dois personagens, fazendo com que arte e crime, ética e estética se misturem trabalhando para anulação de valores morais, ampliando visões sobre estas duas camadas da sociedade: cultura e submundo – existe cultura no submundo?

Sim, existe. Edwin é espectador e ator destas duas camadas, com liberdade para transitar como quiser. O artista divide seu trabalho em quatro categorias: Hidden, Direct, Found e Documents. Cada uma destas categorias refere-se à forma com a qual Edwin adquire material para seu trabalho.

Em Hidden encontramos trabalhos em que o artista se coloca em situações ilegais, assumindo de fato o papel de delinquente. Estas situações são registradas com uma câmera escondida (hidden significa escondido em inglês) para que o comportamento das pessoas que também participam desta situação não se modifique pela presença de uma câmera. Faz parte desta coleção de trabalhos o vídeo Ejercicio de anulación, 2008, em que o artista coloca uma caixa de papelão sob um deficiente físico indigente, que não possui braços e pernas, sem que este o saiba.

Ejercicio de anulación, 2008

 

O indigente é afetado pela ação e se movimenta para retirar a caixa. Edwin repete a ação até uma intervenção da polícia que o questiona sobre os motivos do ato, evidenciando a vulnerabilidade do indigente e chamando atenção para essa condição.

Também faz parte de Hidden a instalação Hermes Peñalosa, 2006 em que o artista grava uma conversa com a polícia em decorrência da publicação de uma carta institucional falsa baseada em um boato que surgiu em um bairro de Bogotá, dizendo que as pessoas perderiam parte da fachada de suas casas para ampliação das ruas. A publicação desta carta preocupou os moradores do bairro que chamaram e polícia. A instalação é composta pela gravação escondida feita da abordagem dos policiais a Edwin.

 

Hermes Peñalosa, 2006

 

A conjunto Direct se dá por trabalhos em que o artista filma situações em que os agentes da ação sabem que estão sendo filmados e muitas destas ações nascem de propostas do próprio artista como uma coleta de testemunhos, evidenciando a realidade da situação, aproximando ainda mais o trabalho da realidade vivida. Como em Clases de cuchillo, 2008, Edwin faz amizade com Jimmy, considerado um marginal que habitava as proximidades da Universidade de Bogotá. Clases de cuchillo é uma série de vídeos em que Edwin pede a Jimmy que o ensine, através de explicações como se usa uma faca em confrontos.

 

Clases de cuchillo, 2008

 

Os vídeos foram expostos no espaço independente Bodegón: Arte contemporáneo, vida social e no dia da abertura, Jimmy vendia os DVDs na entrada do espaço expositivo. Em Direct, Edwin aponta para uma naturalidade que o submundo da criminalidade possui, para metodologias que podem ser aplicadas tanto para se aprender a cozinhar quanto para se aprender a usar uma faca para ferir seu inimigo.

Em Found (found significa “encontrado” em inglês) agrupam-se trabalhos em que o artista se apropria de imagens que chegam até ele. No vídeo Se Vende, 2011, um homem tenta vender uma arma ao artista, exibindo suas funções em um vídeo de demonstração, novamente, expondo metodologias mercadológicas que transitam entre  mundo da mídia e o do crime.

Se vende, 2011

 

Nesta coleção de trabalhos, também faz parte a vídeo-instalação Puntos de Cruce, 2010, em que o artista copiou vídeos apreendidos pela policia, dos guerrilheiros colombianos durante um trabalho que ele mesmo prestou a polícia como designer. Os vídeos retratam as mais diversas situações vividas pelos guerrilheiros, desde momentos em que traçam estratégias de invasão a bancos até situações “constrangedoras” em que tentam – sem sorte – desatolar um carro carregado de armas de um lamaçal.

 

Puntos de Cruce, 2010

 

E por fim, Document compõe uma coleção de trabalhos objetuais. Nesta coleção o artista lida com a questão dos objetos desse submundo e sua circulação. Em Museo Del Placer, 2006, é exibido um pequeno museu de drogas compradas em diferentes pontos da cidade de Bogotá. Cada ponto da cidade possui seu próprio método de embalar e distribuir as drogas.

 

Museo del Placer, 2006

 

As mercadorias ilegais são expostas de maneira “museológica” em uma vitrine, com iluminação especial. O artista traz novamente essa metodologia de venda e conservação para uma comparação com a reunião de objetos históricos da mesma maneira – em vitrines e espaços expositivos.

Faz parte deste conjunto de trabalhos Inserción en Circuito Ideológico #1, 2010, em que o Edwin adquire uma arma no mercado negro e insere nela frases que dizem respeito ao mundo da arte (anseios de artista, como: “quiero vender todas mis obras”) e ao mundo do crime (anseios de criminoso: “quiero violar a una menor”). Após inserir as frases, a arma foi revendida no mercado negro (de onde veio) sem possuir alteração em seu funcionamento, uma vez que não poderia ser exposta na galeria. Restou apenas a fotografia da arma alterada, que segundo Edwin, foi um dos únicos trabalhos vendidos em uma feira de arte contemporânea.

 

Inserción en Circuito Ideológico #1, 2010

 

Portanto, o artista atua como um catalizador de situações fronteiriças. Não age contra a situação marginal, mas junto à ela, contribuindo para um aumento da situação em si (como quando coloca uma caixa sob um deficiente físico marginalizado) e se colocando em uma situação tão vulnerável quanto a do próprio marginal. Ao trazer este limite, o evidencia. Dá-se um processo de anulação das diferenças entre legal e ilegal , mostrando que os dois universos possuem o mesmo sistema.

Eis aqui a distância do “bom-mocismo”, em sua produção. O artista, de fato, livra-se de seus próprios julgamentos morais para entender a situação, vivenciando-a… Porém, a questão que coloco aqui é: esta seria a única maneira de exercer uma atuação artística inteiramente política? Ou melhor, qual o grau que o artista deve ter de envolvimento político e social para um trabalho de arte político?  Não excluo outros trabalhos da discussão, mas convido a pensar sobre as engrenagens que os criaram.

 

Isabella Rjeille entrevista Edwin Sanchez

 

Isabella Rjeille: Seu trabalho transita pela esfera da arte e do submundo da ilegalidade. Constantemente você se encontra em situações em que tem que lidar com essa fronteira, como quando a polícia intervêm na execução de seu trabalho ou quando a própria situação o origina, fazendo com que você também tome atitudes ilegais. Como você vê a questão dessa fronteira em sua produção?
Edwin Sanchez: No meu trabalho problematizo a fronteira do ilegal/legal. É uma tentativa de desvanecer esta fronteira para gerar uma crítica das situações sociais que estão estabelecidas no cotidiano. Para isto eu ultrapasso este limite uma e outra vez.  As vezes como um delinquente (compra e venda de armas no mercado negro) ou agressor (atacando um mendigo aleijado) para depois entrar no mundo da arte. É como reconstruir um crime através da linguagem da arte. A intenção é livrar-se dos preconceitos que têm certas condutas sociais (geralmente negativas) para serem pensadas a partir de outro ponto de vista.


IR: Você divide seus trabalhos em categorias: Hidden, Direct, Found e Documents. A que elas correspondem?

 

ES: Estas categorias correspondem a jeitos de obter material ou registro de uma ação. Porque ao trabalhar com este tipo de problemas ilegais, acho que é muito importante ter uma gama de exposição no sentido de vulnerabilidade, obter uma experiência, deixar-se permear pelo contexto mesmo do trabalho. Isso permite-me uma maior compreensão dos riscos e as implicações sócio-políticas envolvidas.
Pela natureza quase performática deste tipo de trabalho, é importante construir um testemunho, incluindo entrevistas, histórias, objetos, documentos ou registros. Pois tornam-se provas ou índices necessários para explicar uma ação que aconteceu naquele lugar ou tempo determinado. Assim cada trabalho propõe um jeito de documentação diferente, por exemplo em Hidden, são trabalhos que envolvem gravação com câmara oculta. Direct, são entrevistas diretas. Found, são documentos ou registros que eu não fiz, mas que eu me aproprio deles. E Documents, são objetos/documentos que lidam entre a arte e um contexto determinado.

 

IR: Em Ejercicio de anulación podemos ver que sua ação é interrompida em determinado momento pela polícia.  Isso acontece também com  Hermes (porém, de forma proposital). Em muitos de seus trabalhos existe a relação com o outro, seja ele um policial ao qual você deve uma justificativa de seus atos, sejam pessoas envolvidas nas situações que você pretende registrar. Você pensa nestas pessoas que participam diretamente de sua ação como público de seu trabalho? Ou o pensamento crítico a respeito da situação fica reservado apenas ao público especializado?

 

ES: Nestes casos a intervenção da polícia não foi proposital, simplesmente é uma coisa que pode acontecer quando uma ação torna-se ameaçadora ou ilegal. O que acho importante é construir uma relação direta com o contexto (lugar) que vou abordar, com as pessoas e situações envolvidas nele.

Quando eu fiz Ejercicio de anulación que é um ato de agressão contra uma pessoa indefensa (indigente) – ninguém sabia o que estava acontecendo, como foi feita com câmara oculta, produziu-se uma reação natural das pessoas e da polícia, ninguém sabia que esta ação estava sendo filmada. E terminou numa briga contra o agressor (artista) e em ajuda e atenção momentânea ao indigente agredido.

Aqui é difícil saber quem é espectador ou personagem (ator) porque nesta ação, a briga aconteceu com todo o pessoal envolvido: indigente, artista, pedestres e polícia. Mas nesta ação em nenhum momento eu falei que era arte e que era artista, simplesmente que minha agressão era um boicote contra a exploração do indigente.

Acho que este tipo de crítica ou boicote no momento mesmo da ação é mais efetivo se não tem relação nenhuma com a arte. Ninguém quer falar de arte (da performance, do espaço, da cor) quando esta dentro duma briga. É melhor ativar a crítica exercendo o direito de livre expressão como cidadão, “Eu o fiz porque não concordo com isto…e você concorda com isto?” esse tipo de crítica é mais direta, prática e não desvia a discussão para termos complexos.

 

IR: Com freqüência a metodologia aparece em seus trabalhos, como em Clases de Cuchillo. Este conhecimento é passado de forma a possibilitar de fato a que aprender algo ilegal e em Insercion en circuito ideológico #1. Esta arma não possui alteração em seu funcionamento, podendo atirar e matar pessoas. Nestes dois trabalhos, você parece utilizar-se do espaço da arte como uma zona neutra, em que legalidade e ilegalidade podem se confundir, tanto para a compra e venda de objetos ilegais, quanto para transmissão de conhecimentos. Como você vê a relação entre estes dois contextos?

 

ES: Meu trabalho tem muita relação com o trabalho do cronista, que é a pessoa que documenta um lugar ou faz uma ação para conhecer os comportamentos que lhe interessam. Com a diferença que eu uso a linguagem da arte para dizer o que conheci ou aprendi, por isso se mostram como metodologias.

Aqui o mais importante é ficar fora de questões éticas e morais, do bom e do mau. Eu não vou obter uma boa entrevista se olho a meu personagem como um assassino ou estuprador, é necessária uma cumplicidade, uma relação comum. Assim, quando fiz Clases de cuchillo, eu era muito amigo de Jimmy (ladrão) por isso a entrevista se deu de forma muito natural. Igual, quando eu vendi a arma, não pensei em ajudar a combater o mercado negro, foi vendida como qualquer outra. Isto é muito problemático para mim, pois eu não sou nem ladrão, nem agressor, nem traficante de armas, sou um artista que faz tudo isto por conhecer e documentar procurando um olhar diferente

O mundo da arte não é neutro tem texturas, por isso alguns dos meus trabalhos tem problemas para serem expostos, porque são agressivos e não representam uma noção conciliadora ou educativa. Mas eu tento problematizar isto, ultrapassando sistematicamente o limite do ilegal e legal. Isto não só problematiza aspectos sócio-políticos, mas também a razão da arte mesma. Em outras palavras, é apontar à arte e o artista como entidades eticamente muito questionáveis.

 

Edwin Sanchez mantém registros de seu trabalho no site

http://www.edwin-sanchez.blogspot.com/