América Latina: um ideal pós-utrópico?

Imagem: Guga Szabzon – Ato explicativo,2011

 

Que latinidade?

“A Bienal do Mercosul (…) está apoiada no tratado econômico e nas fronteiras geopolíticas dos países que fazem parte do Mercosul”, (…) ganhando “uma dimensão fortemente simbólica e afirmativa das potencialidades das nações latino-americanas como um todo. Portanto, o que a Bienal do Mercosul propõe é a legitimação das identidades destes países no âmbito global, sem deixar de estabelecer relações com a arte contemporânea mundial.” (http://www.fundacaobienal.art.br/)

 

Assim começa o texto introdutório do site da Bienal do Mercosul, que sem rodeios apresenta os objetivos políticos dessa instituição.

Seu nome confunde-se com o bloco econômico do Mercado Comum do Sul, o MERCOSUL, união aduaneira de livre comércio, cujos membros permanentes são Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai, além de estados associados – Bolívia, Chile, Colômbia, Equador, Peru e Venezuela. Se o MERCOSUL visa a integração de tais países mediante a livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos, a Bienal parece atuar no campo simbólico desse grupo. O reconhecimento de uma identidade latino-americana não poderia existir, senão através de uma cultura comum. Frente a um mundo onde os blocos econômicos tendem – ou tendiam – a tornar-se comunidades culturais, a Bienal do Mercosul reúne-se ao Mercado Comum do Sul apostando na construção de uma identidade própria da América Latina.

Mas o que vem a ser América Latina?

Ainda que o uso recorrente desse termo possa conferir-lhe uma aceitação ampla no contexto internacional, a delimitação da noção de América Latina é problemática. A aparente homogeneidade que existe entre seus estados componentes esconde inúmeras exceções que dificultam um contorno claro e consistente desse conceito.

Geograficamente não se pode dizer que a América Latina compreende todos os países da América Central e do Sul, já que o México está situado na América do Norte. Linguisticamente também não se aplica a regra dos idiomas latinos – espanhol, português e francês – pois Belize (América Central) e Guiana (América do Sul) são anglófonos, enquanto no Suriname (América do Sul) se fala o neerlandês. Do ponto de vista histórico dos impérios coloniais seria possível afirmar que todos os países da América colonizados pelos reinos de Espanha, Portugal ou França, formam a América Latina – não fosse o Québec. Ex-colônia francesa e atual maior província do Canadá, o Québec não é considerado latino-americano.

A América Latina não se define como continente, nem tampouco através de uma unidade lingüística, ou em razão de uma história comum. Seu conceito difuso espalha-se largamente por todas as direções sem, no entanto, convergir em algo que lhe confira alguma concisão teórica. Poderíamos ainda apelar para os estereótipos do latino sensual, malandro e preguiçoso como o fator comum que possa vir a nos unir, mas essa parece uma hipótese pouco convidativa a uma identidade que visa se legitimar perante os outros blocos e comunidades internacionais.

Se, portanto, esse conceito não se dá inteiramente pelo viés da cultura, nem pela geografia, qual a realidade tangível que representa a América Latina enquanto tal, não sendo ela uma generalização frágil, vaga ou clichê?

 

Um conceito às avessas

Um conceito que não se sustenta por suas atribuições intrínsecas, como é o caso da América Latina, talvez deva ter emergido apenas como uma das partes de um binômio.  Assim, tentar explicar a latinidade por si só torna-se tarefa ingrata, uma vez que seu entendimento ocorre a partir de uma alteridade, que a distingue e determina. Essa idéia de um conceito construído não somente pelo que lhe é atribuído, mas também pelo que lhe falta, é uma hipótese para se pensar a América Latina. Isto é, levar em consideração que os conceitos se formem também negativamente, ou seja, a partir do que não são.

A origem do conceito de América Latina é uma invenção francesa da segunda metade do séc. XIX que sugeria uma oposição entre a América Anglo-Saxônica e as “nações latinas”(MARTINIÈRE, 1863, p. 28-29 apud CASTELO BRANCO DINIZ, 2007). Sob o império de Napoleão III, a França envia uma grande expedição militar e científica ao México, a fim de derrubar o regime então vigente – já livre da coroa espanhola. O discurso expansionista francês legitimava seu país como herdeiro do catolicismo europeu, assim como dono de uma latinidade lingüística compartilhada apenas com Itália, Portugal e Espanha. Por isso, a chegada das tropas imperiais francesas à América seria um modo de reunir e proteger a “raça latina” (idem ibidem) da expansão dos protestantes anglo-saxões.  Era necessário um discurso que isolasse os Estados Unidos, de modo a conter seus domínios, e simultaneamente agregasse as outras nações em torno de uma causa comum à francesa. Pela primeira vez a América é nominalmente dividida entre latinos e anglo-saxões; católicos e protestantes. A expedição francesa não tardou a fracassar, mas os novos termos cunhados ganharam vida.

Embora o tempo tenha agregado novos significados à chamada latinidade, não cumpriria ela, ainda hoje, a função de alteridade em relação à América Anglo-Saxônica? Aquela América Latina caduca quando analisada isoladamente parece ganhar força e sentido se colocada frente aos americanos que habitam a maior parte do eixo setentrional desse mesmo continente.

Os Estados Unidos aparecem dentro da América como nota dissonante no que se refere aos rumos tomados desde seus tempos de colônia. Embora cada país do continente tenha vivido uma experiência histórica singular, foi nos Estados Unidos que se perpetuou uma engrenagem social e econômica não encontrada em parte nenhuma do Novo Mundo ocidental. A ágil ascensão de uma economia liberal e a organização política em torno de uma democracia consolidada foram alvo de estudos importantes durante os sécs. XIX e XX, como A Democracia na América, de Alexis de Tocqueville (1835) ou ainda A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo, de Max Weber (1904). A hegemonia estadunidense dentro do contexto da América foi logo sentida pelos outros territórios do continente, que sabiam da importância em tê-lo como aliado. Assim, qualquer relação que pudesse existir entre os países americanos estaria permeada pela influência dos Estados Unidos, pendendo para um ou outro lado da balança.

 

Periferia e hegemonia; náufragos e navegantes[i]

Nessa relação hegemonia/periferia, que se acirra com a entrada do séc. XX, perpetua-se analogamente a relação América Anglo-Saxônica/América Latina. Filhos bastardos do casamento entre América e Europa, aqueles ao sul são todos aglomerados sob um só nome: latinos. Ao norte do México, o filho legítimo é a América Anglo-Saxônica. A preponderância dos Estados Unidos, sobretudo dos últimos cem anos para cá, divide sua fronteira geográfica com a outra América, que caracteriza o chamado bloco dos subdesenvolvidos.

Essa assimetria de poder tão discrepante dentro de um mesmo continente gera, quase que inevitavelmente, uma separação nominal entre o lado de cá e o lado de lá. Mas para além dessa divisão, que já existe desde a metade do séc. XIX, é preciso encontrar critérios e particularidades complementares ao subdesenvolvimento que expliquem esse grupo chamado latino. Assim também, é preciso discernir o motivo pelo qual são os anglo-saxões da América tão “desenvolvidos”. Pouco a pouco se constroem os estereótipos e identidades que distinguem as duas Américas no campo simbólico, pois ainda que haja no mundo divisões políticas, econômicas e geográficas, elas não são suficientes para demarcar inteiramente a noção de alteridade.

A subida dos Estados Unidos para um status de potência mundial durante meados do séc. XX contribui para que surjam ainda mais dicotomias estereotipadas entre as Américas. Faz parte de qualquer projeto de hegemonia a legitimação cultural de um povo sobre os outros, por isso, a afirmação da América Anglo-Saxônica se dava também através de uma negação identitária em relação à América Latina. Personagens icônicos que representam a latinidade dessa outra América que não a Saxônica, como Carmen Miranda e Zé Carioca, aparecem justamente entre as décadas de 1930 e 1950, quando os Estados Unidos consolidavam sua posição hegemônica perante a comunidade internacional. Aqueles estereótipos antes citados do latino sensual, malandro e preguiçoso ganham uma forma ainda mais convincente nesse período. A idéia que se tinha de América Latina durante o séc. XX – principalmente em sua segunda metade – foi construída pelos Estados Unidos, que fruíam da condição de potência e mostravam a América do modo tal qual desejavam para o resto do mundo.

Um navio chamado Louca Esperança[ii]: o MERCOSUL?

A criação do MERCOSUL, na última década do século XX, é um passo que faz frente àquela idéia estadunidense de América Latina. No entanto para integrá-la é preciso reinventá-la. Afinal, qualquer que seja a vontade de unidade independente – desde uma comunidade autônoma dentro de um Estado, até um bloco econômico que abranja mais de um continente – é fundamental que seja delineada uma identidade que a caracterize. Assim, a América Latina do início do séc. XXI, mostra sinais de revitalização de sua identidade, que a partir de agora, deve ser desenvolvida pelos seus próprios membros, e não mais por um discurso externo. Surge, portanto, nos Estados latino-americanos uma vontade de remodelar sua identidade de maneira mais autônoma.

Ainda que aparentemente a idéia de reinventar uma identidade possa ser um tanto estranha – já que não se trata de algo palpável e prático, mas sim de uma questão subjetiva – é sabido que há artifícios políticos suficientemente poderosos para lidar com a dimensão do sensível. Assim foi desde o advento do Estado-nação, quando para além dos desafios estruturais de integração, havia questões de âmbito rigorosamente imaterial, como a criação artificial identidades nacionais. Embora a identidade hoje buscada pelo MERCOSUL não esteja mais ligada estritamente à noção de soberania territorial, há ainda a busca por um vínculo simbólico que possa vir a unir esses povos em torno de uma causa comum. A vontade de distanciamento da concepção norte-americana de latinidade e da afirmação de uma autonomia regional encontra, na formação de um bloco, a possibilidade de viabilização dessa independência identitária.

Este projeto de um mercado comum latino-americano se dá na década de 1990, quando o arranjo em torno de blocos econômicos surgia no horizonte como uma organização política e econômica mais pertinente frente ao contexto marcado pela mundialização. Assim como o MERCOSUL, foi formulada pelos EUA na mesma década de 90 a ALCA (Área de Livre Comércio das Américas), que visava uma integração comercial desde o Alasca até Ushuaia. Ambos os projetos correram os últimos anos do séc. XX buscando adeptos, bem como uma estrutura estável para colocar em prática suas implementações econômicas. De um lado a América Latina apenas, e do outro a América como um todo, submetida, é claro, ao poderio estadunidense.

Ainda que a crise da Argentina em 1998/1999 e a desvalorização do Real no mesmo período, tenham afetado pontualmente seus vizinhos e também o MERCOSUL, é possível dizer que um frenesi de louca esperança toma os trópicos americanos na segunda metade da década de 2000. O fracasso dos ideais utópicos de meados do séc. XX, que mal puderam florescer e logo já se viram esmagado por governos autoritários e por um mercado voraz, – ambos intimamente ligados à políticas norte-americanas – haveria de ser superado. O cenário do final das ditaduras e a tentativa de recuperação após a crise da dívida externa – que afundou a economia de boa parte dos países latino-americanos durante as décadas de 1980 e 1990 – parece começar uma fase mais otimista depois dos anos de tormenta. A virada para o séc. XXI acena uma nova possibilidade de ascensão para estes Estados, finalmente domesticados em forma de democracias liberais. Nesse contexto cria-se um discurso de integração regional como modo de reunir forças para enfrentar as intempéries da livre concorrência – que continua a pleno vapor.

Para essa integração, entretanto, não basta apenas estruturas burocráticas, mas sobretudo uma identidade singular e um sentimento de pertencimento. Independentemente de tratados econômicos, fronteiras geográficas, ou pactos políticos, a construção de uma identidade é um desafio de caráter especialmente cultural.  A arte, nesse sentido, torna-se artifício importante na formação de uma comunidade latino-americana e a Bienal do Mercosul está na dianteira desta batalha. Assim, uma das possíveis respostas para esse tipo de indagação – de como reinventar uma identidade – está vinculada também à promoção de políticas culturais que tenham a astúcia de promover seus interesses por detrás de eventos artísticos.  Voltamos, portanto, à Bienal do Mercosul como artifício para manobra política de um grupo de Estados visando objetivos mais abrangentes que uma simples exposição.

Arte burocratizada, economia estetizada

A cultura institucionalizada, esta patrocinada pelos Estados, não consegue jamais livrar-se de interesses que a transcendem. A política tem a cultura a seu serviço, assim como tem as forças armadas. Inegavelmente a cultura é uma das formas mais sutis de influenciar sem deixar ser influenciado, isto é, de exercer poder. Diferentemente da força bruta do poder militar, as políticas culturais promovem – através de recursos engenhosos – um exercício de poder brando (NYE JR, 2005), porém não menos eficiente.

É justamente neste ponto que a Bienal do Mercosul tem uma peculiaridade aparentemente singela, mas que, no entanto, abre a possibilidade para um intrigante desdobramento em sua leitura. Diferentemente de todas as Bienais, esta que ocorre em Porto Alegre desde 1997 leva o nome de um tratado de livre comércio. Portanto, o que se busca é não mais a promoção de objetivos atrelados apenas à política propriamente dita, mas diretamente voltados a fins econômicos. É claro que não se pode separar a política da economia como se separa água do óleo, mas é de certa maneira curioso, ou talvez mesmo escancarado, que se atribua a uma exposição o nome de um bloco econômico. Fica de alguma maneira sugerida, nessa coincidência homônima, que a Bienal do Mercosul exista como propulsora – no âmbito simbólico, é claro – de um tratado neoliberal.

Nada mais contemporâneo, poder-se-ia dizer, do que esta Bienal. Para além da arte que exibe, ela demonstra também o que pode ser visto em uma tendência crescente nas últimas três décadas: a política submissa à economia de mercado. Desde a ascensão de governos ultra-liberais na Inglaterra e nos Estados Unidos no início da década de 1980 que a desregulamentação do setor financeiro, a perda de direitos dos trabalhadores e a privatização de empresas estatais vêm se espraiando pelo mundo afora como políticas dignas de boas democracias. O braço político do Estado teve de recuar em favor da “mão invisível” (SMITH, 2009) do mercado. Mercado este regido pelas multinacionais e, posteriormente, pela financeirização desenfrada. Assim, a arte está a serviço da política, que por sua vez, está a serviço do mercado. O que se vê hoje é, senão, uma arte à mercê do capital.

Encontra-se, portanto, uma América Latina que busca livrar-se do destino impugnado pelos Estados Unidos. Procuramos uma autonomia econômica, política, identitária e introjetamos no frouxo conceito de latinidade todas essas expectativas. Contudo, tal autonomia é instrumentalizada em prol de uma inclusão menos débil frente ao mercado internacional, que tem como principal regente justamente os Estados Unidos. O movimento de descolamento se vê em cheque no momento em que não tem projeto algum, a não ser uma reinserção mais digna na economia neoliberal, que sabemos, tem mais náufragos do que navegantes (GALEANO, 1871). Nesse sentido, o esforço em promover uma outra entrada que não pela porta dos fundos no sistema internacional se dá, entre outros, através da arte, que tem na Bienal do Mercosul um de seus pilares.


[i] “O desenvolvimento é uma viagem com mais náufragos que navegantes”, frase de Eduardo Galeano em As veias abertas da América Latina

[ii] Referência à peça Os Náufragos da Louca Esperança (Auroras) (Les Naufragés de Fol Espoir (Aurores)), da Cia Théâtre du Soleil, apresentada no Brasil em outubro de 2011 no SESC Belenzinho.

 

 

Bibliografia

ANDERSON, Benedict. Comunidades imaginadas. Lisboa: edições 70 – Brasil, 2005.

BOBBIO, Norberto. Dicionário de política. Brasilia: editora UNB, 2004. 12ª edição.

CASTELO BRANCO DINIZ, Dilma. O conceito de América Latina – uma perspectiva francesa. Encontro Regional da ABRALIC, USP São Paulo, entre 23 e 25 de julho, 2007.

CHAIA, Miguel (org). Arte e política. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2007

FENWIK, Charles G. A Organização dos Estados Americanos: o Sistema Regional Inter-Americano. Rio de Janeiro: Edições GRD, 1965. Pp. 13-31 e 46-63.

GALEANO, Eduardo. As veias abertas da América Latina. Porto Alegre: LP&M Editores, 2010.

LOWENTHAL. Abraham. Os Estados Unidos e a América Latina no início do século XXI. Revista Política Externa. Vol. 15, nº3, 2006-7. Pp. 91-102.

NYE JR, Joseph. Soft Power: The Means to Success in World Politics. PublicAffaires, 2005.

SMITH, Adam. A riqueza das nações. São Paulo: Madras Editora, 2009.

TOCQUEVILLE, Alexis de. A Democracia na America. Belo Horizonte: Itatiaia Editora, 1998.

WEBER, Max. A Ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.

 

Sites

http://www.fundacaobienal.art.br/ acessado em 27/10 às 19h

www.mercosul.gov.br/ acessado em 27/10 às 21h