Compilado de entrevistas sobre a exposição “ToChipado”, do grafiteiro Cranio
Parte 1 // Entrevista com o grafiteiro Cranio
Entrevistadora: jornalista Tatiane de Assis.
Tatiane – Na rua, você utiliza o spray. Aqui na galeria também. Por que você fez essa escolha, mesmo utilizando um suporte diferente (tela)?
Cranio – A faculdade que fiz foi de desenvolver pintura com spray. Pincel, para mim, não é interessante no momento. Não é essa a técnica que venho estudando; faço grafite.
Tatiane – E quais são as diferenças entre a absorção da tela e a do muro? Há algo de particular no bico do spray utilizado?
Cranio – A parede se prepara com látex ou nem se prepara. Na tela, passamos uma massa específica (gesso acrílico). Tudo isso para que ela tenha flexibilidade e durabilidade maior.
Tatiane – Não vejo nessas obras referências ao deslocamento da sua produção da rua para a galeria. É isso mesmo?
Cranio – É exatamente a mesma coisa. Uso a mesma técnica. O mesmo personagem. Eu mantenho a linha que sigo na rua e na galeria.
Tatiane – Em muitas obras, você utiliza um traço esfumaçado para delimitar os personagens.
Cranio – Isso é uma técnica de skinny cap (bicos de latas de spray que têm um orifício estreito para a saída da tinta). É a galera do Brasil que a utiliza mais. É um diferencial.
Tatiane – Você tem um personagem característico nas suas telas: o indígena azulado. Como ele surge?
Cranio – Meu personagem é um reflexo da sociedade. Vejo a sociedade como uma grande selva de pedra. E, consequentemente, quem vive em uma selva são os índios. No nosso caso, de uma grande metrópole, são os índios azulados.
Tatiane – E por que a cor azul?
Cranio – O azul é uma cor de fácil combinação. Cores quentes e frias. No Brasil, existe uma expressão que é: “Eu tenho sangue nobre”. Eu utilizei isso como referência.
Tatiane – E o vermelho?
Cranio – O vermelho tem relação com a pintura yanomâmi (etnia indígena com tribos localizadas na região norte da Amazônia), feita com urucum.
Tatiane – O formato do indígena azulado tem semelhanças com as criaturas amareladas da dupla de artistas OsGemeos. Você se inspirou neles?
Cranio – Não. O que tem é uma história. Eles foram os primeiros grafiteiros de São Paulo. Eu comecei em 1998, acho que eles fazem desde 1986, algo do tipo. Eu vim a perceber as obras deles na década de 90, comecinho dos anos 2000, quando me aprofundei no grafite.
Essa comparação é só pela qualidade mesmo. Pelo fato de eles terem o traço mais refinado, uma elaboração maior na composição das obras. Esteticamente, é bem diferente. O meu é azul. Tem uma outra linguagem. Tem uma outra vestimenta. E, se você pensar, não é tão mal (a comparação). Eles são considerados os melhores grafiteiros do mundo. Acredito que isso não é negativo.
Tatiane – Em várias obras da exposição aparecem cores fluorescentes. Isso tem alguma coisa a ver com a diablada (dança tradicional de Oruro, Bolívia)?
Cranio – Não tem nada a ver. É apenas uma máscara. Os índios africanos a usam muito também. A minha exposição fala mais da dependência tecnológica. Todo mundo depende de um aparelho eletrônico, que seria o telefone. Você tem ali a sua agenda, o seu computador, a sua calculadora. Suas redes sociais. É como uma droga, a ponto de pessoa ser dependente física e mentalmente dela.
Tatiane – Seus outros trabalhos, registrados no seu site ou na rua, parecem mais ácidos. Estes, da exposição, parecem não seguir essa linha. Conversei com o Luis Maluf (galerista), e o tom parece se aproximar mais ao de um levantamento. Você faz aqui uma crítica ou somente uma constatação?
Cranio – Na verdade, estou fazendo uma reflexão da era que eu estou vivendo. E essa exposição fala da dependência, da necessidade, da vaidade. Não é nem um nem outro, é apenas uma reflexão.
Tatiane – Você traz também celulares e aparelhos eletroeletrônicos (televisão, monitores, computador) com telas pintadas.
Cranio – Gostaria de ter a face do meu índio estampada onde hoje tudo está estampado. Seria uma “face” a mais para bater. E de transportar meu trabalho para outros lugares, não ficar só em “canvas”.
Tatiane – Em várias telas aparece sua assinatura com a caligrafia da pichação.
Cranio – A pichação é uma caligrafia autêntica de São Paulo. Ela é super-reta, cuidadosamente equilibrada, “na régua”, como a maioria dos pichadores fala. É uma característica minha, que sou paulistano e venho daqui.
Parte 2// Entrevista com o galerista Luis Maluf
Tatiane – Vamos falar do tema da exposição. Parece que a crítica é rasa. É o que a gente ouve sempre: “A internet está deixando todo mundo dependente, como se isso não acontecesse com a televisão”. Parece-me inofensiva.
Luis Maluf – Esta exposição do Cranio, de todas as que já acompanhei, foi a mais leve. E essa pergunta muita gente fez também. Ele é conhecido pelos homens-bomba. Não sei, mas acho que, desta vez, ele quis fazer um levantamento e não uma crítica. Ele até queria fazer uma brincadeira. Pedir que todo mundo colocasse, antes de entrar, o celular em um saquinho. A gente entendeu, mas falou: “Se eles colocarem, ninguém divulga a exposição”.
Normalmente, quando as pessoas vêm aqui, elas fotografam antes de ver. Não querem sentir a obra, querem ver qual foto fica mais bonita no Instagram. Acho que foi nesse sentido a crítica dele, da relação espectador-obra.
Tatiane – A galeria está na Rua Peixoto Gomide, quase na esquina com a Oscar Freire. Uma localização privilegiada e bem elitista. Como pensar o grafite aqui?
Luis Maluf – A gente está no Jardins, mas traz o pessoal de outros lugares. Eles acham que não seriam bem-vindos, mas são. Quem mora aqui não acredita. E, fazendo isso, já sei que estou fazendo um bom trabalho. Sou muito mais amigo dos artistas, pessoas que não moram aqui. Eles são mais verdadeiros.
Tatiane – Já houve algum problema relacionado à discriminação?
Luis Maluf – Não. Apesar de eu ter clientes muito importantes, eles gostam disso. Quando eles vão a outra loja, depois da compra acabou. Aqui, faço questão de apresentar o artista que vem da periferia. É um sentimento a mais que eles têm. Isso acaba tendo muito mais valor.
Tatiane – Na abertura da exposição de Crânio, percebi que vocês não colocam os valores (Prática de mercado que não acontece, por exemplo, na feira de arte contemporânea PARTE, que se propõe um local de comercialização mais democrático).
Luis Maluf – Por ser uma galeria de arte no Jardins, se a gente colocar o valor perde a chance de conversar. Prefiro que as pessoas venham me perguntar. Porque são meus conhecidos. Vou dar todas as informações, independentemente de eles serem clientes ou não. Não quero que eles achem caro e vão embora.
Tatiane – Você disse que 70% das obras de Cranio expostas já estavam vendidas antes da abertura. Qual é o valor das telas dele?
Luis Maluf – Os valores vão de 6 a 20 mil. Agora, todas foram vendidas.
Parte 3 // Entrevista com o curador Francisco Rosa
Tatiane – Como foi o processo de feitura do texto de abertura e, consquentemente, de curadoria da exposição de Cranio?
Francisco Rosa – Eu tenho assinado a curadoria de várias exposições da galeria. Em todas elas, o que tento fazer é entender a proposta do artista. Qual o principal eixo da poética deles.
No caso de Cranio, cujo assunto são as redes sociais, o que fiz foi a pesquisa de etimologia de palavras. Ou pesquisei artigos científicos, para ver até que ponto aquilo que está sendo falado é pertinente ou não. Normalmente, não faço textos nem explicativos nem descritivos. Prefiro algo mais sugestivo, que aponte para um pensamento.
Tatiane – Você acompanhou a produção das obras?
Francisco Rosa – Eu conheço o Cranio há algum tempo, já tive a experiência de vê-lo trabalhando, produzindo. Inclusive, acompanhamos a intervenção que ele fez na parede. Eu procuro ter esse estreitamento com o artista, para que não fique uma coisa vaga, para fazer essa ponte entre o artista e o público.
Tatiane – Você poderia explicar a disposição das intervenções em televisões e computadores?
Francisco Rosa – As intervenções no celular e no espaço expositivo são colocadas no fundo da exposição em função, um pouco, da arquitetura. Foi uma exposição que bombou muito, e uma das nossas preocupações era que as pessoas ficassem à vontade. Quando se expõe tridimensionalmente, é muito comum existir um suporte colocado em cima. No caso da galeria, por ela ser estreita, ter o pé-direito baixo, a gente expõe assim para não haver acidentes.