Circulando | Kauê Garcia e Ana Grama

 

Olhos em toda parte

Yudi Rafael

{English below}

O percurso da rua para o interior do Ateliê397 implica cruzar uma passagem estreita e comprimida entre fachadas de estabelecimentos comerciais, que liga a porta de entrada a área aberta do corredor. Este, por sua vez, conecta todos os espaços do Ateliê, do escritório ao galpão expositivo, servindo de acesso à cozinha, banheiros e salas. O corredor sustenta também um grande muro, que separa o Ateliê de estabelecimentos vizinhos, eentre o muro e os vários ambientes internos e a rua,apartado dos fluxos exteriores ao espaço, se ajusta poroso, como uma espécie de híbrido de área de passagem e convivência.

Em Circulando, o público do Ateliê397 é recebido com dispositivos sonoros ativados por sensores de presença: sistemas de alarme cuja lógica de uso carrega em si propriedades de um esquema panóptico, síntese tecnológica das práticas disciplinares. Enquanto instrumento de vigilância,a eficácia desses sistemas se exprime em seu caráter preventivo e na possibilidade de um funcionamento contínuo através de seus mecanismos automáticos, com gastos reduzidos.

Entende-se que a vigilância permanente é um ideal tecnológico próprio às sociedades disciplinares, tal como propõe Foucault (1997), nas quais se exerce o poder disciplinar, modalidade que, não excludente a outras formas de poder, se infiltra entre elas, expandindo seus efeitos até os “elementos mais tênues e mais longínquos”. A estatização de seus mecanismos se dá com o poder policial centralizado, que assume o controle do corpo social como um todo, em suas dimensões mais elementares e passageiras, tendo como objeto de seu exercício“tudo o que acontece”, incidindo diretamente sobre o comportamento dos indivíduos.

Os estados de alerta que aqui se engendram com a ativação dos mecanismos de alarme, desde a passagem da entrada, onde o som se faz suave e menos perceptível, pornão destoar de seu uso corrente, até o disparar estridente e de sobressalto gerado pela aproximação do público a determinada área do muro do corredor, são distintos. Equacionar seus sentidos e reações corporais na percepção do espaço, implica um entendimento dos modos de circulação e de seus usos estabelecidos, podendo desencadear reflexões sobre os vários condicionamentos aos quais estamos sujeitos nos diferentes lugares que habitamos, freqüentamos ou cruzamos, sejam espaços de arte ou não.A situação que se estabelece aponta então para o atravessamento dos espaços por forças ramificadas de ordenamento cujos mecanismos podem operar quase invisíveis, mas que incidem, de modos diversos, sobre os indivíduos e seus corpos.

Os disparadores de Circulando suscitam pequenas reorganizações no entorno, junto ou a partir dos dispositivos, em uma situação laboratorial que se inscreve num espaço de arte. Se quaisquer tipos de agenciamento sem territórios esquadrinhados exigem negociações com instâncias de poder em exercício pelo Estado, tais negociações constituem, em parte, um repertório o qual um espaço independente constantemente atualiza, nos embates próprios a gestão e manutenção de uma programação cultural e artística com diferentes graus de dependência e autonomia.

 

FOUCAULT, Michel. O Panoptismo. Em: Vigiar e punir: nascimento da prisão. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.

Kauê Garcia e Ana Grama formam o duo t1nn1tuzzzz, um projeto artístico dedicado a investigação de fenômenos sonoros e suas implicações e significados sociais, políticos e culturais. Com dois álbuns lançados pelo selo Malware, de Campinas/SP, participaram recentemente do projeto Entre Paredes (Sesc Piracicaba, 2016) e do 2o Festival Internacional de Musica Experimental (Centro Cultural São Paulo, 2016).

Yudi Rafael é curador do programa de exposições Corredor397 2016, no Ateliê397, e do projeto Residência Artística Cambridge (Ocupação Hotel Cambridge, 2016). Recentemente, foi curador convidado de Potlach – Trocas de Arte (Sesc Belenzinho, 2016) e um dos críticos da Temporada de Projetos 2016 (Paço das Artes/MIS). Dentre outras, foi curador de primeiro de maio (Croatã, 2015) e 1:1 (Casa Contemporânea, 2014).


 

Eyes everywhere

Yudi Rafael

 

The way from the street to the inside of Ateliê397 requires crossing a narrow passage, which is squeezed between the façades of businesses and connects the entrance to the outdoor area of the corridor. This, in turn, connects all the spaces of Ateliê – from the office to the exhibition annex – providing access to the kitchen, bathrooms, and rooms. The corridor also has a large wall that separates Ateliê from neighboring businesses; surrounded by the wall and the various indoor environments and the street, and separated from the flow outside the space, it fits porous, as a kind of hybrid space that combines a passageway and a social area.

In Circulando [Circulating], Ateliê397’s audience is greeted with sound devices which are activated by motion detectors: alarm systems whose logic of use carries in it the properties of a panoptic scheme, technological synthesis of disciplinary practices. As a surveillance tool, the effectiveness of these systems is expressed in their preventive nature and the possibility of continuous operation through their automatic mechanisms, with reduced spending.

Permanent surveillance is a technological ideal specific to disciplinary societies, as proposed by Foucault (1997), in which the disciplinary modality of power is exercised, but has not replaced all the other forms of power; it has infiltrated the others, extending its effects “to the most minute and distant elements”. The state control of its mechanisms occurs with the centralized power of police, which take control of the social body as a whole, in its most elementary and temporary dimensions; the police are concerned with “everything that happens”, directly affecting individuals’ behavior.

The alert states resulting from the activation of the alarm mechanisms from the time one crosses the entrance – where the sound is soft and less audible, since it is no different from the way it is usually used – to the piercing, sudden noise created when it goes off as the audience gets close to a certain area of the corridor wall, are distinct. Addressing your senses and bodily reactions in the perception of space implies an understanding of the forms of circulation and its established uses, and may trigger reflections on the various constraints to which we are subject in the different places we inhabit, visit or cross, whether these are art spaces or not. Then, the situation that is established points to the crossing of spaces by ramified ordering forces, the mechanisms of which can operate almost invisibly, but which affect individuals and their bodies in many ways.

The triggers of Circulando provoke small rearrangements in the surroundings, whether together with or from the devices, in a laboratory situation that is created in an art space. If any types of assemblage without scanned territories require negotiations with the representatives of power exercised by the State, then such negotiations are partly a repertoire that is constantly updated by an independent space, in the usual conflicts handled while managing and maintaining a cultural and artistic program with different levels of dependency and autonomy.

 

FOUCAULT, Michel. O Panoptismo. Em: Vigiar e punir: nascimento da prisão. Ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1997.