A interferência urbana em Rodrigo Braga

 

Carne, folhas, pedras e penas são alguns dos materiais recorrentes na obra do artista Rodrigo Braga. A matéria orgânica, que aparece viva através do corpo do artista ou morta naqueles componentes em decomposição, é combinada e reinserida na paisagem natural. A nova situação desses elementos, ajustados de maneira ficcional e com intenções plásticas, é registrada em fotografias ou vivenciada por meio de ações performáticas. Foi esse procedimento estético que tornou Braga conhecido no circuito artístico. Essa operação ganha outros contornos na exposição que o artista manauara apresenta no Paço das Artes, em São Paulo, até dezembro. A mostra “Abrigo de Paisagem/Veículo de Passagem”, fruto de uma residência de dois meses na capital paulista, reúne trabalhos em que as reflexões acerca das relações do homem com seu meio surgem contaminadas pelo contexto urbano.

A instalação que recebe o visitante é constituída de um motor degradado, provavelmente de um automóvel abandonado, e da raiz de uma grande árvore. Os corpos, distantes uns 2 metros um do outro, estão unidos por uma corda apertada, que parece tentar aproximá-los à força. Outra peça de grandes dimensões, na sala expositiva, apresenta um motor dentro de uma raiz. São elementos amortecidos, como fósseis ou cadáveres de seres outrora em atividade na paisagem da cidade, e em confronto direto. A ideia de recombinação de matérias mortas nas fotografias de Rodrigo é repetida nessas esculturas, agora com materialidade e peso no espaço. O motor de um automóvel e as raízes de um vegetal são agentes vitais para o funcionamento dessas estruturas díspares, uma forjada pelo homem e a outra, obra da natureza.

O vídeo da mostra, projetado em duas paredes distintas, traz uma ação que, em linhas grossas, desenrola-se na construção de dois tipos de abrigo. Num primeiro momento, Rodrigo estaciona um carro antigo, carregado de portões de ferro de casas demolidas, próximo a um flamboyant na rotatória da entrada da Cidade Universitária. Ele constrói uma espécie de cabana, cercando a árvore com as pesadas grades, e prepara com uma lona um tipo de isolamento entre o interior e o exterior do abrigo. Depois de pernoitar nessa barraca, o artista toma novamente o veículo e atravessa uma densa paisagem urbana, barulhenta. Na edição, quase dá para sentir o cheiro de poluição. Aos poucos, o cenário da cidade dá lugar a um ambiente rural, sugerindo que o artista ruma ao interior. Ele para novamente aos pés de uma árvore, escala seus galhos e arranca-os um por um, soterrando o carro. Quando já é noite, o artista entra e repousa no automóvel escondido no monte de galhos. Fim da ação.

A obra de Rodrigo transmite uma obstinação, uma persistência intensa de sua ação ao se envolver com esses materiais. Nos trabalhos em que se enfrenta diretamente a matéria viva, fica-se com a sensação de que Rodrigo abordava uma tentativa insistente de um projeto de integração – ou retorno – a um estado natural, que já demonstrava seu fracasso pela própria construção plástica e ficcional da obra. Como poderia o homem social, culturalizado, acessar uma condição anterior a essa? Ele trataria então da sensação de domesticação, de contenção dos instintos que vivenciamos em nossa contemporaneidade, problematizando uma eventual restauração da conexão com o ser primitivo.

No entanto, esses novos trabalhos não lidam somente com materiais naturais. O veículo atua como uma cápsula que atravessa cidade e campo, dia e noite, função e disfunção. Se em um lugar o ritmo é engessado, inflexível, acelerado, em outro o tempo parece mais maleável, seguindo um curso natural. A operação anterior entre homem e natureza agora é amplificada em urbanidade e natureza. Em um abrigo, portões de ferro e lona comportam – ou isolam – uma árvore. No outro, os galhos amassam e fazem sumir um carro. Como natureza e industrialização coexistem no ambiente urbano, e como o ser humano engendra, ficciona e reorganiza essas estruturas paisagísticas?

Rodrigo costuma ensaiar seus trabalhos, sejam fotografias, sejam vídeos, através de pequenos rascunhos, em que esquematiza no papel suas ações e composições antes de pô-las em prática. Esse desenhos, postos nas paredes e com uma iluminação específica, talvez sejam um ponto desnecessário na mostra. Trata-se de ensaios pessoais do artista que, exibidos nesse tipo de contexto, parecem tentar justificar ou esclarecer as demais obras ali reunidas. Esses ensaios pessoais, despreocupados de qualquer cuidado estético, parecem ganhar um estatuto de obra que não precisariam ter.

Esse detalhe, no entanto, não enfraquece a mostra nem prejudica sua força poética. As obras, aliás, ajudam a descolar do artista uma frequente imagem romântica e exótica a ele associado, que reduz sua pesquisa a uma frágil relação do homem com a natureza. É a primeira vez que objetos tão industrializados, como o carro, a lona e o motor, figuram em seu trabalho, além, é claro, do próprio cenário urbano. O conjunto também acessa uma dimensão política, ao ter o entorno do Paço das Artes como ponto de partida. Afinal, o próprio espaço é uma universidade que é também cidade, com uma natureza domesticada e organizada. Podemos reconhecer outras metonímias em relação à ideia de abrigo, ao considerar que a Cidade Universitária tem como vizinha uma pequena favela, conhecida como São Remo, num momento em que os movimentos de luta pela moradia ganham destaque nas páginas dos jornais e na agenda do governo.

 

 

Felipe Molitor
Novembro de 2015