Palimpsesto

de Yuri Firmeza e curadoria de Thais Rivitti

{English below}

afundamento – aprofundamento – fundamento.

Inicio esse texto com um pequeno jogo de palavras, numa tentativa de mimetizar o deslocamento sutil de sentidos entre os termos, que é a forma com que a meu ver o trabalho de Yuri Firmeza se constrói. Não pela lógica cartesiana, regular ou matemática, mas por uma afinidade mais intuitiva dos sons, das ideias, palavras, imagens.

É preciso afundar, deixar-se engolir, embarcar. As obras de Yuri criam uma sensação de estarmos perdidos num tempo-espaço outro, diverso da realidade cotidiana. Em “Nada é”, trabalho presente na exposição que hora organizamos, a sucessão das imagens e seu caráter extraordinário, aproxima a nossa experiência ao devaneio, como se estivéssemos sonhando ou deixando trabalhar o inconsciente. De uma outra forma, sobretudo pela proximidade com que as figuras aparecem em “Brô Mc’s” ( feito em colaboração com o artista Igor Vidor) ocorre algo parecido. Há algo desajustado e sem foco nas imagens. Tudo se passa como se estivéssemos vendo uma imagem antes dela se formar corretamente em nossos olhos. Surge uma vontade de re-enquandrar, de tomar distância daquela cena. Vagamos a procura de um ponto fixo a partir do qual poderíamos ter clareza, uma distância que transformasse, talvez, aquelas pessoas em objetos para o olhar, algo que o filme insiste em recusar.

Ao olhar para os trabalhos de Yuri, pode-se ter a impressão de que eles operam na superfície. Apresentamos dois vídeos: a tela plana que nos atinge frontalmente parece estabelecer conosco uma relação direta, sem meandros ou ambiguidades. Contudo, os trabalhos não se esgotam naquilo que mostram abertamente, são superfícies que pedem aprofundamento. Sim, há sempre uma narrativa sendo contada: o cotidiano de jovens Guarani Kaiowá hoje, a vida na cidade de Alcântara. Mas, além das narrativas mais literais, é preciso enxergar um modo de se contar a história bastante peculiar. Nelas não é possível acharmos um começo, um meio e um fim. Se é verdade que o vídeo é uma linguagem que opera numa duração – algo que se dá no tempo – vemos nos vídeos uma temporalidade estranha. “Nada é” mostra a confluência do passado e do futuro, nas imagens da tradicional Festa do Divino – é incrível que isso ainda exista no Brasil, exclamamos – contrapostas às de foguetes da base de lançamentos de Alcântara (uma imagem de futuro, do desconhecido, do que está por vir). “Brô Mc’s” apresenta outro lapso temporal: o trabalho mostra como ainda hoje estamos muito próximos ao momento tido como fundador do Brasil com a chegada dos europeus no país e o tratamento dado aos indígenas desde então. Quanto tempo se passou? Ainda estamos no mesmo lugar? O rap, como linguagem musical, aqui opera como marco importante do presente, enquanto o conteúdo dos discursos nos leva para o passado.

Como contar uma história que não sai do lugar? Como contar uma história sem começar pelo passado e sem que se chegue a um futuro? Não é preciso muito para compreendermos que o modo com que o artista aborda essas pequenas narrativas dirigem-se a uma compreensão maior da própria História. Os trabalhos nos convidam a repensar a possibilidades de uma História. Questionam seus fundamentos, suas categorias, seu modo interno de funcionamento. Apresentam narrativas que não são mera sucessão temporal, numa cadeia evolutiva nas quais tempos e lugares se misturam, em que o passado nunca está “morto e enterrado”, mas continua a vibrar no presente.

Nesse ponto, chegamos à obra “Pamlipsesto – a Arca”, terceiro elemento presente na exposição e que empresta seu nome à mostra, e traz a imagem do terremoto. É também uma obra que conta uma narrativa específica – uma vez que se refere ao terremoto do México, ocorrido em 1985 – mas que se expande. O terremoto, poderíamos pensar, é o signo dessas novas histórias a serem construídas. Nos materiais que compõem a instalação “Arca”, coletados por Yuri e muitos outros artistas (ele trabalhou com um grupo de alunos da UNAM, Universidade Autônoma do México) vemos a dimensão física e geológica do terremoto sempre associadas as suas implicações sociais, econômicas e culturais. O terremoto é o acontecimento que desordena passado e presente, que mistura camadas, que faz o que está embaixo vir a tona e que enterra o que, ainda ontem, estava de pé bem ali. Ao novo historiador (que, afinal, somos todos nós: índios, o povo, os brasileiros, os mexicanos…) cabe lidar com as noções de instabilidade, convergência, destruição, apagamento e reconfiguração – todas essas ideias que partem do signo terremoto. Evidentemente essa nova história, sempre provisória, só pode ser escrita em Palimpsesto, ou seja, naquilo que se raspa para escrever o novo.

Thais Rivitti

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Palimpsest

by Yuri Firmeza and curated by Thais Rivitti

sinking – deepening – foundation.

I begin this text with a pun in an attempt to mimic the subtle displacement of meanings among the words – in my view, this is the way in which Yuri Firmeza’s work develops. Not based on a Cartesian, regular or mathematical thinking, but rather on a more intuitive affinity of sounds, ideas, words, and images.

You have to sink, let yourself to be swallowed, embark. Yuri’s works create a sense of being lost in another time-space, different from everyday reality. In Nada é [Nothing is], the work shown in the exhibition we are organizing, the succession of images and their extraordinary character bring our experience closer to daydreaming, as if we were dreaming or letting the unconscious work. In a different way, especially because of the proximity with which the figures appear in Brô Mc’s (made in collaboration with artist Igor Vidor) something similar happens. There is something misaligned and unfocused in the images. As if we were seeing an image before it takes shape before our eyes. A desire arises to re-frame, look at that scene from a distance. We wander looking for a fixed point from which we can see it clearly, view it from a distance that would perhaps turn those people into objects to look at, something that the film insists on refusing.

By looking at Yuri’s works, we get the impression that they work on the surface. Two videos are shown: the flat screen that strikes us frontally seems to establish a direct relationship with us, without ins and outs or ambiguities. However, the works are not exhausted in what they openly show; they are surfaces that ask for deepening. Yes, there is always a narrative being told: the daily lives of young Guarani Kaiowá today, life in the city of Alcântara. But in addition to the more literal narratives, one must see a very peculiar way of telling the story. It is not possible to find a beginning, a middle and an end. If it is true that video is a language that operates within a period of time – something that happens in time – we can see in the videos a strange temporality. Nada é shows the confluence of past and future in the images of the traditional Holy Spirit Festival – the fact that it still happens in Brazil is amazing – opposed to the rockets from the Alcântara launch site (an image of the future, of the unknown , of what is to come). Brô Mc’s presents another time lapse: the work shows how we are still very close to the time considered as the foundation of Brazil with the arrival of the Europeans in the country and the treatment that has been given to indigenous people since then. How much time has passed? Are we still in the same place? Rap, as a musical language, operates here as an important landmark of the present, while the content of the discourses takes us to the past.

How can you tell a story that is always at the same point? How can you tell a story without beginning with the past and without reaching a future? It does not take much to understand that the way in which the artist addresses these small narratives is directed to a greater understanding of History itself. The works invite us to rethink the possibilities of a History. They question its fundamentals, its categories, its internal mode of functioning. They present narratives that are not merely a temporal succession, in an evolutionary chain in which time and place mingle, in which the past is never “dead and buried,” but continues to vibrate in the present.

At this point we arrive at the work Pamlipsesto – A Arca [Palimpsest – the Ark], the third element found in the exhibition and after which the show is named, and which has the image of an earthquake. It is also a work that creates a specific narrative – since it refers to Mexico’s earthquake in 1985 – but which goes beyond that. The earthquake, we might think, is the sign of the new stories to unfold. The materials that make up installation Arca, collected by Yuri and many other artists (he worked with a group of students from UNAM, the National Autonomous University of Mexico), show the physical and geological dimension of the earthquake always associated with its social, economic and cultural consequences. An earthquake is an event that messes up the past and the present, mixes layers, makes what is underneath to surface and buries what was standing right there just yesterday. To the new historian (after all, all of us are historians: indigenous people, the people, Brazilians, Mexicans…) we must deal with the notions of instability, convergence, destruction, erasure and reconfiguration – all the ideas that are based on the earthquake sign. Of course, this new story, which is always temporary, can only be written in Palimpsestus, that is, in what is scraped off for the new to be written.

Thais Rivitti

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RELEASE

Yuri Firmeza: Palimpsesto

A abertura exposição que apresenta três obras do artista, seguida de debate, acontece no dia 12 de agosto, a partir das 15H.

Com o apoio da Secretaria do Estado da Cultura, via ProaC, o Ateliê397 apresenta a exposição “Palimpsesto”, do artista Yuri Firmeza de 12 de agosto a 17 de setembro. A mostra, tem a curadoria de Thais Rivitti, reúne três trabalhos do artista: os vídeos “Nada é” e “Brô MC’s” (esse último uma parceria com o artista Igor Vidor) e a instalação “Palimpsesto – Arca”.

A instalação, “Palimpsesto – Arca”, realizada quando o artista ministrou um curso na UNAM, no México, tem como fio condutor o grande terremoto que ocorreu na Cidade do México em 1985. Nela são reunidos mapas, fotografias, postais e objetos que remetem ao acontecimento, além de desenhos geológicos e diagramas que explicam tecnicamente o que ocorre com a Terra durante um terremoto. A parte visível do terremoto, o tremor na superfície da Terra (com suas consequências muitas vezes devastadoras) é ocasionado pelo movimento interno de acomodação das placas tectônicas. Nesse movimento, que ocorre abaixo da superfície, as camadas geológicas se misturam, se levantam e afundam criando uma desordem. Se, antes do terremoto, as camadas correspondem, cada uma, a um período específico de sedimentação, depois do terremoto essas diferentes épocas não estão mais organizadas sucessivamente. Nesse sentido, o desmoronamento espacial do terremoto corresponde também a uma desorganização – ou nova organização – temporal.

É também sob o signo dessa confluência de tempos e espaços que os dois vídeos apresentados na exposição “Nada é” e “MC’s Brô” se apresentam. “Nada é” mostra a cidade de Alcântara, onde, ao mesmo tempo, há um centro de lançamento espacial – O Centro de Lançamento de Alcântara – e é o local da tradicional festa do Divino Espírito Santo. Em “MC’s Brô”, assistimos a um clip de RAP composto por Guaranis Kaiowá. Nesses dois vídeos as ideias de tradição e de revolução convivem. A relação entre culturas diferentes, referidas a contextos temporais e espaciais distintos, ganham centralidade.

Debate: no dia da abertura, 12 de agosto, também será realizada a mesa “Pensando a cultura popular hoje”, com o artista Yuri Firmeza e o crítico de arte Rafael Vogt. Tendo como referência as obras de Yuri presentes na exposição, a mesa propõe-se a debater, afinal, o que falamos quando falamos em cultura popular no Brasil.  A defesa das expressões ditas “populares” que, durante um longo período, permaneceram apartadas das discussões da arte contemporânea tornou-se lugar comum nos discursos críticos da atualidade. Mas, o lugar que essas manifestações ocupam nos vários discursos em voga na atualidade é bastante diverso: ora elas servem a recomposição de uma noção estanque de identidade nacional, ora elas realmente abrem um diálogo profícuo entre o que se costumava classificar de alta a baixa cultura. Debater esses usos diversos da cultura popular é algo necessário para se mover no debate da arte contemporânea hoje.

Serviço:
Exposição: Palimpsesto do artista Yuri Firmeza e curadoria de Thais Rivitti

Abertura: Sábado, 12 de agosto, das 15 às 20H
Visitação: Segunda a sexta-feira, das 14 às 19H

Debate: Pensando a cultura popular hoje
com Yuri Firmeza, Rafael Vogt e mediação de Jaime Lauriano
Sábado, 12 de agosto, às 18H

Gratuito