Ocupação narrativa (e a narrativa residual) e FÓRMICA

por Gustavo Colombini

 

Ocupação narrativa (e a narrativa residual)

 

O texto Fórmica é uma tentativa de criar, através de uma estrutura e uma organização muito peculiar da prosa, um universo autônomo de leitura, propondo um princípio básico segundo o qual todo o dito se destina a ser ouvido. Daí sua semelhança com um experimento dramatúrgico: leva-se em conta o seu caráter elocutório, o que delibera a definição de um texto teatral para o teórico francês Patrice Pavis, diante da espantosa diversidade dramatúrgica atual. Levando isso em conta, o texto pretende desenvolver uma narrativa de funcionamento autoral, onde as regras são descobertas e/ou inventadas pelo leitor. Nesse “universo autônomo” do texto, aliando forma e conteúdo, a pesquisa se desenvolve na criação e na concretude de uma narrativa cuja contextualização é própria e cujo conceito é desenvolvido somente a partir dela.

Trata-se de uma investigação a partir de autores como Júlio Cortázar, Jorge Luis Borges, Jonathan Safran Foer, Luiz Ruffato, André Sant’Anna e outros.

Para dar conta disso, digamos, propõe-se uma “narrativa residual”. A “narrativa residual” se instaura propositalmente esburacada, a fim de eliminar a possibilidade de entendimentos aparentes, desenvolvendo sua tendência de afetar os espaços falhos de uma narração que não quer se completar, mas solicitar a atenção e a construção pessoal criativa do leitor (que estará sendo ocupado pela exploração narrativa). Uma “narrativa residual” se constrói a partir de “resíduos” (pistas) que vislumbram uma história que inexiste em sua completude. Ou seja, além da possibilidade aberta de se contar uma história, estão o exercício e a exploração da enunciação, estendendo ao leitor um papel de “decodificação” da linguagem, que ganha espessura, volume, vãos, novos tempos, novos espaços.

Essa maneira de ocupação literária trabalha com o lide, a exploração, a investigação de uma recepção criativa em potencial: a criatividade da incerteza, a potência criativa do desconhecido ou do semidesconhecido, a aposta sensorial, corroborando a ocupação narrativa como ofício inventivo do que lê.

Além disso, o texto Fórmica compõe o trabalho A imagem do texto no texto da imagem, em parceria com Leonardo Araujo. Esse trabalho, assim como o processo de escrita de Fórmica, unindo a escrita criativa e uma estruturação própria de apreensão do texto, tenta concretizar uma reconfiguração imagética e imaginária de um texto literário, investigando suas possibilidades expositivas.

 

Fórmica

 

Em algum outro lugar as coisas se explicam de maneiras insuspeitadas, conforme o que eu venho tentando dizer, eu digo, em algum outro lugar as coisas se repetem exatamente como aconteceram, milhões de vezes seguidas, xxxxxx, como se as coisas pudessem ser registradas no tempo através da falta que fizeram à ordem lógica e natural das coisas. Eu sinto tudo isso na necessidade de ocupação do tempo, por exemplo, tratando o termo “tempo” como as menores distâncias possíveis entre conjuntos de dois pontos distintos entre si, eu preciso respirar melhor, eu definitivamente acredito na responsabilidade insustentável dos nossos gestos mais incalculados. Eu quero dizer, com isso, que o susto é a potência mais prudente e sensata de todas as nossas reações. Eu tenho me imaginado no seu lugar, eu diria que as coisas, todas elas, sugerem um passado que não tiveram, como se carregassem em si uma mentira inata. Nesse caso, eu posso entender que a mentira, veja bem, não tem aproximação nenhuma com a ausência da possibilidade da verdade, mas que constrói uma terrível semelhança com a relação que naturalmente existe, por exemplo, entre “dormir” e “estar de olhos fechados”. Só você sabe o quanto eu tenho mudado, eu sou praticamente uma outra pessoa desde que eu comecei a achar que eu realmente fosse uma outra pessoa, tudo é uma questão de transparência e, você sabe, a transparência é uma questão de ângulo e todo ângulo é uma questão simplificada de disposição gráfica. Na verdade, a essa altura, eu sinceramente não excluo a possibilidade de perceber que esse outro lugar em que eu tenho pensado também seja uma questão de disposição gráfica, no entanto, uma disposição gráfica menos simplificada, eu imagino. São tantas maneiras de explicar esse outro lugar em que eu tenho tanto pensado, que eu quero falar um pouco sobre tudo o que eu tenho pensado ultimamente pra ver se ou eu ou você conseguimos encontrar conexões ou alguma expectativa, vamos lá, eu tenho pensado em fugir, eu tenho pensado em sumir daqui, eu tenho pensado em você, e essa notícia, você diria, essa notícia faz parte do meu movimento natural de mudança, como se a mudança fosse realmente um movimento, uma ciência corporal, você ainda é o mesmo, você disse, eu ainda sou o mesmo, eu repeti e prendi a respiração. Eu respiro melhor depois de prender a respiração por trinta segundos seguidos, no máximo, é como se você não pudesse acreditar nessa notícia, Eu venho mudando, na dança natural do meu corpo, ou melhor, da minha consciência sobre ele, mas não é necessariamente a notícia que vai esclarecer a sua falta de compreensão das coisas, mas a sensação de notícia que vem junto com ela. Além do mais, essa é uma notícia minha depois de todos esses anos. Eu gostaria de retomar rapidamente esse assunto, tudo bem, A notícia é uma sensação de notícia, assim como o tempo é uma sensação de distância, xxxxxx, isso é o que eu venho tentando fazer você entender de uma vez por todas, tempo e espaço, tempo espaço, tempoespaço. Eu tenho coisas novas pra te mostrar, eu tenho muitas coisas novas pra te mostrar, eu fiz uma tarde inteira de compras, eu li uma estante e meia de livros, eu perdi uma noite e tanto de sono, por exemplo, eu não consigo prender a respiração por mais de trinta segundos, eu sei quando está chovendo em algum outro lugar porque os sons que acontecem ao nosso redor durante a chuva ficam todos abafados, a zona de pressão se desequilibra e se transforma, vinte e sete, vinte e oito, como aconteceu ontem, naquele nosso reencontro depois de meses inteiros, anos inteiros, vidas inteiras, vinte e nove, trinta, e eu me desassosseguei na sua presença porque eu não sabia se era a sua garganta ou se eram os meus ouvidos que estavam mortos. Você reparou primeiro do que eu, naquele momento, Chovia em algum outro lugar onde nós não estávamos. Eu só existo como intenção, você repetiu, Eu só existo como intenção, você repetiu o que eu disse como se pudesse pensar instantaneamente ao ouvir o que eu dizia, as pessoas só existem como intenção, e se tudo estivesse realmente bem isso não faria sentido nenhum pra você, mas eu estava errado. Falando nisso, eu tenho errado tanto ultimamente, por exemplo, eu estava errado quando escolhi acordar mais cedo hoje, eu estava errado quando deixei o café mais cinco minutos no fogo, eu estava errada quando escolhi chorar a noite inteira quando poderia ter escolhido dormir, eu estava errada quando escolhi ficar de olhos fechados, eu estava errado quando pensei que os nossos problemas se resolveriam com uma notícia minha, aliás, uma notícia bem mais ignorada do que a conversa que eu imaginei que nós teríamos, eu estava errado quando liguei pra você, eu estava errada quando não escutei o telefone tocar, eu estava errado quando sugeri um passado que eu nunca tive, desculpe, é realmente decepcionante descobrir uma coisa dessas, eu posso imaginar o quanto é decepcionante, nós não tivemos conversa nenhuma, eu não nasci sabendo mentir e eu não aprendi ao longo do tempo. Naquela noite eu quis explicar tudo o que estava acontecendo comigo, eu fiquei ansioso por isso, as palavras carregam uma responsabilidade de existência, elas carregam longos silêncios, longuíssimas pausas intermináveis, como se “vida” e “morte”, por exemplo, fossem complexos universos autônomos de ocupação do tempo ao mesmo tempo em que são substantivos comuns, eu tremi de frio ensaiando quais seriam as minhas palavras mais autênticas, as sugestões habitacionais mais bem intencionadas de todos os universos mais bem compartilhados entre nós, mas você já estava dormindo. Naquela noite eu dormi do seu lado, mas nós não nos falamos, nós aceleramos a velocidade de expansão das nossas diferenças, nós dormimos juntos no mesmo desencontro. Eu não carrego o seu jeito tímido de beleza, as suas dúvidas padronizadas, meu deus, eu mal posso esperar pra ver você desafiando o seu próprio esquema estético pré-determinado. Eu aposto meus trinta segundos de apneia e a minha boa respiração que vem a seguir. O seu jeito tímido de beleza tímida, alguma maneira mais incisiva dos nossos despropósitos menos gentis, eu quero dizer que entendo todas as dores que você sente na cabeça, nos membros superiores, nos membros inferiores, no estômago e no peito, mas eu não consigo entender o que fez você voltar até aqui. Isso não é, garanto, uma exigência subjetiva que eu faço, mas uma maneira de dizer o quanto as coisas me despertencem e o quanto a fotografia, isso mesmo, o quanto uma fotografia em que estamos juntos consegue explicar a minha teoria prático-conceitual do tempo como opressão insustentável de si mesmo. Você só existe como intenção, eu disse, e a intenção, sabendo que o susto carrega uma potencialidade insuperável, carrega a potencialidade que lhe sobra, que é o mesmo que carregar uma derrocada iminente e justamente por isso parecer menos importante. Isso é bem parecido com a minha insegurança de hoje, eu procuro um outro lugar onde as coisas se repetem exaustivamente como já aconteceram, milhões de vezes seguidas, como se as coisas pudessem ter sentido simplesmente porque carregam em si a responsabilidade do eterno retorno, assim como o termo “tempo” que carrega a leveza de uma manifestação biologicamente dramática e que se confunde, simultaneamente, com a simples passagem lógica e natural das coisas. Eu posso falar mais sobre isso se você quiser, eu imagino que você diria sim, eu quero, pode continuar, então eu continuaria falando. O tempo é pra mim uma estrutura obviamente atemporal, a minha maneira mais sincera e dissimulada de ocupação, pra você entender, são milhares de desconexões e nenhuma expectativa. Eu sinto tudo isso na necessidade de ocupação do tempo, por exemplo, ainda tratando o termo “tempo”, repito, como as menores distâncias possíveis entre conjuntos de dois pontos distintos entre si. Foi o que você descobriu e me contou, não necessariamente nessa ordem, na ordem lógica e natural das coisas que eu me recuso a confiar. Todas as coisas celebram secretamente o fracasso de não serem outras coisas, é normal, você disse e continuou, então eu escutei, você continuou falando, eu escutei, você ficou em silêncio, eu escutei, você foi embora, eu continuei escutando. Todas as coisas resumem em si mesmas as suas mais sinceras intencionalidades, por exemplo, Eu quero que você se pareça mais comigo, Eu quero que você se equivalha a uma incerteza inquestionável sobre mim, Eu quero que você se confunda com o meu medo de se confundir comigo, eu estava errado quando me ocupei de tempo, eu só estava querendo habitar melhor o espaço que você me ofereceu, Eu quero tudo isso e quero o contrário de todos eles, os meus pedidos, os meus problemas, os seus recados, o meu descuido, a minha falta de respeito, Eu não quero mais nada. Então eu lembrei do que você me falou sobre as coisas, sobre todas elas conseguirem sugerir um passado que não tiveram, como se carregassem em si uma mentira inata, e eu entendi porque agora eu não estou onde você deveria estar. Você coleciona os seus erros com a dedicação de um paranoico, Eu celebro secretamente o meu fracasso de não parecer quem eu sou, você sabe, você não vai mudar, eu também não. Na verdade, eu adoro o seu jeito de resumir as coisas com longos silêncios, longuíssimas pausas intermináveis, todas intencionais, é o seu jeito, você sabe, é o momento em que você me explica sem graça as opções comportamentais que você fez, depois de meses, anos, séculos inteiros de estudo, É quando eu não quero estar onde você está. Do outro lado, eu estou ligando pra ela e ela não está escutando o telefone tocar. Ela está do outro lado do quarto, da casa, da rua, ela está do outro lado de tudo, em algum outro lugar, onde as coisas se repetem, eu continuo escutando, xxxxxx, eu não vou atender, eu não preciso disso, são milhares de desconexões e nenhuma expectativa, por favor, eu preciso respirar melhor, eu, um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze, catorze, quinze, dezesseis, dezessete, dezoito, dezenove, vinte, vinte e um, vinte e dois, vinte e três, vinte e quatro, vinte e cinco, vinte e seis, vinte e sete, vinte e oito, vinte e nove, trinta, pronto. Em algum outro lugar as coisas se explicam de maneiras insuspeitadas, conforme o que eu venho tentando dizer, eu digo, em algum outro lugar as coisas se repetem exatamente como aconteceram, milhões de vezes seguidas, como se as coisas pudessem ser registradas no tempo através da falta que fizeram à ordem lógica e natural das coisas. Isso está acontecendo agora, por exemplo. Eu estou de olhos fechados, mas eu não estou dormindo.