No braço de uma galáxia, nas costas de uma gota de chuva

Por Felipe Nóbrega

 

O planeta Terra tem cerca de 40 mil quilômetros de circunferência. Se fosse comparado com o tamanho de uma bola de basquete, a crosta terrestre — única parte sólida do nosso planeta — seria tão espessa quanto uma folha de papel enrolada em torno dela. Nessa folha de papel, vivem e já viveram cerca de 105 bilhões de seres humanos, alguns dos quais você conhece ou irá conhecer. Incrível. Porém, mil vezes menos incrível que os estimados 100 trilhões de micro-organismos que vivem dentro de um único intestino-ciclo-faixa-bacteriana de um homem adulto. Hoje se estima que apenas cerca de 1% dos micro-organismos obtidos em amostras ambientais já tenham sido isolados e identificados. Com o avanço das técnicas de biologia molecular e de sequenciamento genômico, só agora estamos entendendo a magnitude da diversidade da vida na Terra (Riesenfeld, Schloss et al., 2004). Mais interessante – o conhecimento de nosso desconhecimento levou certos cientistas a proporem que pode ser que exista um tipo de vida na Terra que seria indetectável pelas técnicas atuais. Esses organismos comporiam a chamada shadow biosphere (biosfera oculta), formada por um tipo de “vida estranha”, de bioquímica diferente da utilizada pela vida como nós conhecemos. Pesquisadores da área estão buscando evidências da plausibilidade de que uma nova arquitetura biológica exista ou tenha existido em nosso planeta. (Davies, Benner et al., 2009).

Em ciência, o princípio da mediocridade é a noção de que não há nada de raro em eventos que costumamos reconhecer como únicos ou parte de alguma sorte de milagre. Copérnico tirou a Terra do centro do sistema solar, a Teoria da relatividade tirou o Sol e Via Láctea do centro de qualquer coisa. A Terra é só mais um planeta, orbitando só mais uma estrela em só mais uma das incontáveis galáxias existentes no universo. Continuando com o dilúvio de números, sabemos aproximadamente que a Terra exista há 4,5 bilhões de anos e que a vida tenha surgido há 3,5 bilhões de anos. A vida então, talvez surja onde possível, assim que possível. No entanto, nós damos valor tão somente ao que se desdobra na fina folha envolvendo a bola de basquete. Talvez porque essa sensação de perspectiva seja apenas passageira, quiçá o suficiente para ganhar um pouco de atenção enquanto reproduzimos essas informações com números já embaralhados quicando em memórias impermanentes. Talvez dure tão pouco porque é através dessa folha de papel que nossos olhos se cruzam, é aqui que nossas mãos se sujam, é ela que fica translúcida quando limpo minha boca-coxinha-de-padaria.

Esse tema foi abordado de forma muito mais profunda, elegante e surpreendentemente poética por Carl Sagan, astrônomo e astrobiólogo pioneiro, em seu livro The pale blue dot (Sagan, 1996). Nesse livro, inspirado por uma foto tirada a bilhões de quilômetros mostrando a Terra como um pixel perdido na vastidão do espaço, Sagan afirma: “Desse ponto de vista distante, a Terra pode não parecer de qualquer interesse particular. Mas para nós, é diferente. Olhe novamente para o ponto. Isso é aqui. É a nossa casa. Isso somos nós. Nele todos os que você ama, todos que você conhece, todos de quem você já ouviu falar, todo ser humano que já existiu, viveram suas vidas. O agregado da nossa alegria e sofrimento, milhares de religiões confiantes, ideologias e doutrinas econômicas, todos os caçadores e coletores, heróis e covardes, criadores e destruidores da civilização, cada rei e camponês, cada jovem casal apaixonado, cada mãe e pai, criança esperançosa, inventor e explorador, cada professor de morais, cada político corrupto, cada “superstar”, cada “líder supremo”, cada santo e pecador na história da nossa espécie viveu ali – em um grão de poeira suspenso num raio de sol. (…) Nossas atitudes, nossa imaginada autoimportância, a ilusão de que temos uma posição privilegiada no universo, são desafiadas por este pálido ponto de luz.”

Todas essas observações, comparações, não trazem o preço de uma lição de moral, quanto menos a constatação de algum fato. No máximo, a lembrança de que na maioria das vezes somos incapazes de pensar além dos nossos 50 m² alugados a preços inflacionados.

 

BIBLIOGRAFIA

DAVIES, P. C. W. et al. Signatures of a Shadow Biosphere. Astrobiology [S.I.], v. 9, n. 2, p. 241-249, Mar 2009.

RIESENFELD, C. S. et al. METAGENOMICS: Genomic Analysis of Microbial Communities. Annual Review of Genetics [S.I.], v. 38, n. 1, p. 525-552,  2004.

SAGAN, C. Pálido ponto azul. Tradução de EICHENBERG, R. São Paulo: Companhia das letras, 1996.