Futuro lançamento

12.11 – 17.12.2022

Heitor Ramalho
Curadoria Lucas Goulart

Press Release

Num momento em que a sociedade se vê diante de projetos políticos polarizantes e as atenções se voltam para o planejamento dos próximos anos, os trabalhos de Heitor Ramalho reunidos em Futuro Lançamento exploram os mecanismos que estruturam a paisagem e a distribuição do espaço público. Aponta-se a necessidade de pensar coletivamente no direito à cidade, à moradia e às formas de construção de espaços comuns para a superação dos impasses contemporâneos.

As obras em exposição expandem-se pelas linguagens da fotografia, da instalação, do objeto e do site-specific e compartilham, como ponto de partida, o bairro em que está instalada a mostra — e que começa a dar sinais de iminente gentrificação. Entre elas está a instalação Montantes (2021-22), composta de aproximadamente 3 toneladas de pedras britadas e reunidas em montes, numa alusão tanto à paisagem minerada quanto à acumulação de riqueza. Outro destaque é Fênix (2022), que traz, no portão do espaço expositivo, elementos da pintura na fachada de uma loja de ferramentas para escavação observada pelo artista durante uma caminhada pela vizinhança. A imagem foi reproduzida invertida, formando um sorriso sinistro, que recebe o público na mostra.

Com curadoria de Lucas Goulart, a exposição ocupa a fachada, o espaço interno e o externo do galpão, numa organização em que as obras agregam sentido umas às outras, sucessivamente — apresentando os lados “de dentro” e “de fora” no processo de construção das cidades e das subjetividades. “Essa circularidade, de certa forma, é análoga aos procedimentos de reprodução, extração e transposição nos próprios trabalhos de Heitor e, por sua vez, sublinham diferentes estágios dessa cadeia de produção das cidades, do desejo e da riqueza”, comenta Goulart.

A interlocução entre o artista e o curador, ambos de origem no ABC paulista, teve início há um ano, a partir do interesse mútuo pelo espaço urbano e pelas estratégias de apropriação e intervenção pública como operações artísticas.

O bem-humorado título Futuro Lançamento apropria-se do jargão de anúncios de construtoras e remete às obras da exposição; ao permanente estado de projetorenovação vivido em São Paulo; às próprias expectativas com o “lançamento” do jovem artista; e ao processo de gentrificação em curso na Barra Funda, que ameaça a existência do próprio espaço de arte no bairro e é, simultaneamente, uma consequência de sua presença ali.

Imagens: Carlos Spinello

Texto Curatorial

 Ótima localização!
 
A região na Barra Funda em que acontece Futuro Lançamento ainda carece de bares descolados, opções de comida vegana e uma boa padaria de fermentação natural. É claro que há, também, uma galeria de arte e, mais importante, este espaço que realiza a exposição. Mas a vizinhança é, sobretudo, dividida entre antigas casas de tipologia industrial próximas à linha do trem, dezenas de oficinas mecânicas e galpões que abrigam indústrias e comércios.
 
Entre esses galpões, existe um com uma misteriosa fachada preta, coberta por uma pintura em aerografia de tons dourados. Os pontos brilhantes são imagens de objetos pontiagudos, distribuídos num arranjo ovalado, que remetem ao tímpano de um arco, mas não tão arredondado. Também adornam a fachada a imagem de um pássaro de fogo e a intrigante sigla “FPS”. Dobrando a esquina e seguindo um pouco mais adiante, encontramos, ao lado de um novo edifício com estúdios de até 25 m2 e nome em inglês, outra fachada preta com elementos dourados, quase idêntica à anterior.
 
As duas guardam o mesmo estabelecimento comercial, que negocia a venda de “ferramentas de penetração de solo”, isto é, acessórios que são acoplados aos dentes de escavadeiras para vencer a dureza de qualquer material. Equipado com essas ferramentas, o maquinário pode realizar o transporte de grandes volumes de pedras, escavações para a extração de recursos e qualquer tipo de intervenção necessária para o avanço das máquinas.
 
Ao replicar a imagem dessas fachadas na entrada do Ateliê397, o artista Heitor Ramalho traça um percurso que triangula três galpões que ocupam faces contrárias num mesmo quarteirão. E o público que chega à exposição é recebido por um largo sorriso, formado pelas mesmas pontas, por adaptadores, dentes, travas, protetores, cantos e lâminas utilizados na construção civil e na mineração.
 
Com esse giro, a imagem, que antes tinha a função de anúncio, torna-se indício de um sistema de produção simbólica e material que, assim como as três fachadas e as obras em exposição, parecem se retroalimentar. Vem à tona, com aquele sorriso amarelo, algo de cínico ou sinistro nos mecanismos de construção da paisagem e formação das cidades.
 
Condições facilitadas!

Oportunidades de mudar ou investir; de morar mais perto do trabalho e dos serviços essenciais; de acordar todos os dias com uma bela vista na janela; ou de se resguardar de todo crime e maldade atrás de altos muros se apresentam todos os dias, do centro aos bairros mais afastados da cidade. Os medos e desejos mobilizados pelo mercado imobiliário são vários e conhecidos, assim como é notória a sua influência sobre o poder público na distribuição de equipamentos e na construção do espaço urbano.
 
Na série Anúncios (2021-2022), Heitor Ramalho se apropria dos suportes de propagandas do mercado imobiliário encontrados na cidade, como banners e cavaletes, e cria jogos de reflexos e transparências. Nessas obras, é como se as chamadas e as imagens publicitárias tivessem atingido o esgotamento ou se anulado pela repetição. Em Anúncio I (2021), a superfície do cavalete parece refletir um céu sempre azul por cima – sintetizando com ironia os discursos publicitários que prometem a vida perfeita e nos lembrando, simultaneamente, da substituição da vista do céu verdadeiro por sua apreensão apenas através do reflexo azul virtual e distorcido nas fachadas dos prédios espelhados.
 
Em 39 Cômodos (2022), são apresentadas imagens capturadas pelo artista quando ele trabalhou como fotógrafo para uma imobiliária em São Caetano do Sul. A sequência de imagens chama atenção por realçar uma pasteurização do espaço doméstico e pela normalização de condições, menos do que ideias, de espaço e luminosidade nas residências disponíveis a boa parte da população. No ambiente interno da paisagem urbana, a obra de Heitor Ramalho propõe reflexões sobre a arquitetura como formadora de subjetividades, ou sobre como o antigo “sonho da casa própria” – vivido por nossas avós, mães e tias e que, a nossa geração, parece impossivelmente distante – se conforma a partir de limitações e imposições do mercado imobiliário.
 
Assim, as convenções na construção de imagens para fins imobiliários ficam evidentes, ao mesmo tempo que, a certa distância, parecem mostrar as formas angulares de obras minimalistas ou pinturas abstratas geométricas. Nesse arranjo, elas podem trazer ao contexto brasileiro atual algo da sátira de Homes for America (1967).
 
Obras em ritmo acelerado!
 
Com a ajuda de uma pá, Heitor, vagarosamente, removia pedras britadas de um grande monte - como os de canteiros de obras e calçadas - que, como nos canteiros de obras e calçadas, tinha sido formado dias antes, quando um caminhão despejara da caçamba milhares de britas no chão. Dada a ineficiência da ferramenta que o artista tinha em mãos diante da quantidade enorme de pedrinhas acumuladas, sua coreografia parecia poder se repetir infinitamente.
 
Equilibrando o peso da pá cheia de pedras, Heitor virava seu corpo, dava dois ou três passos e as despejava, formando um montículo. E, com a repetição e algumas variações desses gestos, ele construiu Montantes (2022), distribuídos na área externa ao espaço expositivo.
 
Narrar essa cena é inevitável. Possivelmente porque as próprias obras, em Futuro Lançamento, nos fazem olhar o trabalho e os processos de construção das coisas. A partir do relato, também ficam evidentes aspectos performáticos e uma lógica inerente da obra, que nos permitem imaginar a repetição indefinida desses montes na paisagem e que, portanto, nos instigam a pensar as implicações possíveis em posicionar esse trabalho em relação à tradição da Land Art.
 
Dispostos na área externa, os montes se apresentam quase como ícones. Representações gráficas de montanhas, cada um a cópia do modelo anterior. A paisagem formada por Montantes tanto remete aos canteiros de obras como traça um caminho até a origem desses materiais, apresentando a cadeia montanhosa que foi dinamitada e distribuída nos pequenos fragmentos, que agora voltam a formá-la, antes de serem devolvidos à distribuidora e utilizados na produção de cimento.
 
Em Montantes, outra importante parte do sistema de significados e relações entre o lado de dentro da exposição e o mundo externo se estabelece. Com a pedra britada e o dourado, o artista sistematiza um pensamento sobre paisagem, acúmulo, circulação, valor e especulação que aparece por toda a mostra.
 
Na economia, “montante” denomina o valor especulado de um investimento, somando-se os juros ao capital inicial. Essa operação de “cálculo de valor futuro’” é um dos conceitos básicos da matemática financeira, dedicado a prever e controlar a variação sofrida por uma quantia investida ao longo do tempo. O processo de virtualização e especulação do capital tem como um de seus marcos a substituição do ouro como material que oferecia lastro ao valor do dinheiro pelo dólar americano.
 
Com a variação no acúmulo de pedras em cada monte de cumes dourados, estabelecem-se conexões entre a mineração do ouro – prática determinante na história do Brasil – e a especulação e a mineração contemporâneas. Montantes apresenta ensaios da representação material de um sistema econômico altamente abstrato e virtual, mas com consequências materiais palpáveis na experiência cotidiana.
 
Ao eleger a cidade como objeto, o artista mimetiza em seu processo os mesmos procedimentos que determinam a experiência e o espaço urbanos: ritmo, repetição e reprodução seriada. O deslocamento ou a replicação de elementos da cidade perpassam toda a prática de Heitor Ramalho, que reconhece na paisagem símbolos repetitivos, de fácil reconhecimento e, portanto, densos de significados. Com sutis intervenções, eles são implicados em observações e comentários sobre as disputas de poder pela ocupação dos espaços comuns, trazendo à tona diversos estágios na cadeia de produção da cidade e, consequentemente, da sociedade.

Lucas Goulart, novembro de 2022

Clipping

Gustavo Zeitel, 12.12.2023. Disponível aqui

SERVIÇO

Futuro Lançamento

Exposição de Heitor Ramalho com curadoria de Lucas Goulart

De 12 de novembro a 17 de dezembro de 2022

Rua Cruzeiro, 802 – Barra Funda