Baixo Centro

O que foi o Festival, o que é o Movimento

Por Malu Andrade

 

O Baixo Centro de São Paulo – região cortada pelo polêmico Minhocão, que compreende os bairros de Santa Cecília, Campos Elíseos, Barra Funda e Vila Buarque – possui uma enorme e interessantíssima gama de instituições, organizações, grupos e espaços culturais, que, no entanto, não dialogam entre si. Pensando nesta grande quantidade de locais efervescentes, um grupo da Casa da Cultura Digital, localizada na rua Vitorino Carmilo, próxima ao Metrô Marechal Deodoro, iniciou um mapeamento destes pontos culturais pela região do Baixo Centro. Este mapa e o interesse despertado pelas descobertas foi o ponto de partida para a criação de um Movimento e, a partir dele, um Festival a serem realizados na região.

Os moradores de São Paulo sabem bem os problemas encontrados nesta área: Cracolândia, especulação imobiliária crescente e políticas de eugenização. O espaço público fica completamente negligenciado, não há opções de lazer ou pessoas nas ruas, todos vivem fechados em suas vidas particulares. O Movimento Baixo Centro, do qual o Festival foi seu ponto de partida, visa mudar isto. Foi pensado para ser mais do que alguns dias de atividades. Seu intuito maior é dar um empurrão para que projetos interessantes que acontecem pela região se encontrem, dialoguem e tornem-se permanentes, ou seja, uma forma de ocupação pelos moradores e agitadores culturais.

A forma mais independente encontrada para sua realização, sem que fosse preciso recorrer ao dinheiro público de editais e ao marketing cultural de empresas – que poderiam engessar a estrutura do Festival em modelos pré-estabelecidos e burocráticos, além da possibilidade de veto de parte da programação –, foi recorrer ao sistema de financiamento colaborativo, conhecido como crowdfunding, por meio do site Catarse. Desta maneira seria garantido um festival feito completamente pela sociedade civil e para sociedade civil, horizontal e colaborativo.

Além do dinheiro obtido por meio do site de crowdfunding, a renda foi complementada com doações de trabalhos de arte que possibilitaram a realização de um leilão de parede no Galpão do Folias, localizado bem ao lado do Minhocão e do metrô Santa Cecília. O objetivo era a criação de um “leilão anti-leilão”. Por isso ocorreu em um espaço alternativo, com uma festa com djs, cervejas e palhaços como leiloeiros. O lance inicial era de R$ 200,00 para cada obra dos 42 artistas participantes, entre eles Tatiana Blass, Guto Lacaz, Henrique Oliveira, Feco Hamburger, Amanda Mei, Fábio Tremonte e coletivo Nós Moçada. Articulações importantes foram consolidadas neste evento em parcerias com o Folias, o Assalto Cultural e a Casa Tomada.

Os colaboradores, convidados por alguns membros da Casa da Cultura Digital, aumentaram espantosamente à medida que o projeto se espalhou pela rede, uma vez que qualquer pessoa poderia participar. Por meio de grupos nas redes sociais e encontros presenciais, a comunicação e as decisões eram tomadas de forma a dar transparência e permitir o envolvimento de todos no processo. A programação, da mesma forma, foi aberta a todos e a “curadoria” ficou responsável por cuidar para que as atividades pudessem ser executadas – por isso o nome de “cuidadoria”.

A produção, seguindo o caráter colaborativo de todo o Movimento, foi uma via de mão dupla, em que os proponentes das atividades tinham uma posição ativa em sua organização e realização. Uma estrutura convencional de produção foi substituída pelo engajamento por parte daqueles que propunham a ocupação do espaço público. E não faltou mão de obra querendo trabalhar. Horários flexíveis, empréstimo de materiais e parcerias entre grupos foram fatores fundamentais nesta produção integrada. Todos trabalhando para e pelo Festival. Durante dez dias toda a região do Minhocão foi coberta por atividades simultâneas dos 106 projetos inscritos.

 

Humanização Urbanística

Por Thiago Carrapatoso

 

Os movimentos recentes contra o sistema econômico atual, conhecidos como “occupy-algo” ou “ocupe-algo” (derivados de tantos outros movimentos, como os Indignados espanhóis ou a Primavera Árabe), demonstram que os cidadãos estão carentes de espaços para se expressar. A questão deixa de ser realmente o sistema macro para se tornar o micro, o vizinho, o que está muito próximo.

São Paulo é uma megalópole. É uma cidade horizontalmente vertical. As ruas parecem ser as únicas veias para que o ar flua e o vento faça com que a cidade respire e continue funcionando. Em uma vista panorâmica, se tem a ideia de que há um povo esquecido no meio de tantos projetos urbanísticos e condomínios de luxo. São Paulo, devido a suas proporções, tornou-se um emaranhado de construções, de obras, de prédios. Como pensar em uma identidade coletiva quando o cinza é o nosso vizinho, quando não se tem ideia de comunidade, mas apenas de pequenas bolhas fechadas às influências de fora? Não se sente o ar, não se sente o espaço para subjetividades. Tudo passa a ser concreto, cinza, institucional, grande, fechado. O micro e o sujeito ficam esquecidos. As reivindicações parecem ser muito mais do que apenas gritos contra governos ou sistemas econômicos. São vozes que querem reivindicar a própria voz.

Para piorar, as políticas públicas para áreas centrais da cidade são catastróficas. Situações sociais são falsamente resolvidas com aparato militar. Expressão de rua emergente, o grafite feito em pilastras ou paredes de um centro degradado é apagado com tinta bege. Construções históricas, tombadas por órgãos governamentais, dão lugar a apartamentos triplex com varandas gourmet que custam mais do que o trabalhador médio receberá em toda a sua vida. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, 62% das famílias paulistanas não têm dinheiro para adquirir uma moradia própria[1].

Os cidadãos passam a acreditar que o que é público, financiado com dinheiro dos impostos pagos por eles mesmos, não é deles. As praças, as ruas, os órgãos públicos são geridos por políticas públicas cujas decisões parecem não fazer parte do cotidiano desse mesmo trabalhador médio que não tem dinheiro para pagar uma moradia, mas tem que arcar com tributos que chegam a 30% do valor bruto de seu salário. O medo de ocupar o espaço público dá lugar à ditadura do “pedir permissão”. Se um órgão público não autoriza, não se pode fazer nada nas ruas ou em lugar algum. O cidadão, já sufocado pelo concreto, sente-se preso por não compreender a máquina que rege a sua vida.

O Festival BaixoCentro demonstra que a vida cultural urbana não é feita apenas de instituições. Nosso intuito foi o de exemplificar que as leis já garantem o direito de ocupação, que não é necessário pedir autorização para órgãos públicos para organizar uma oficina de estêncil, um cinema ao ar livre ou um show em horário comercial em uma praça pública. Legalmente, as ruas e praças já nasceram como palcos para arte, como lugares de encontro e expressão. E isso é um direito do cidadão, só cabe a ele usá-las para dançar.

São Paulo precisa ser ocupada pelas pessoas, e não por concreto ou por políticas públicas opressoras. Os cidadãos precisam ter consciência de seu papel. Precisam sair da bolha casa-carro-trabalho-carro-casa-carro-shopping-carro-casa. Precisam entender que é bom sentir o vento de uma brisa formada pelos corredores dos arranha-céus. Precisam compreender que a arte não desaparece mesmo que as paredes sejam pintadas de bege. Precisam estar abertos a experimentar, por fim, uma cidade mais humana. O Festival BaixoCentro é um espaço para experimentar essa humanização urbanística. Vamos dançar?

 

1] Fonte: Folha de S. Paulo, “Mais de 60% das famílias não podem comprar casa em São Paulo” (http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/1089968-mais-de-60-das-familias-nao-podem-comprar-casa-em-sao-paulo.shtml)