Aqui e lá

Imagem: vista aérea do aeroporto Kastrup, Copenhagen.

Acabo de chegar no aeroporto em Copenhagen. É incrível, Europa rica equilibrada, social democrata, hoje de direita, apoia os EUA no Iraque, realmente não dá para entender. Tudo funciona, tudo é bem quieto, bem acabado parece que existe uma convenção da paz. Este é o difícil para nós sub-acontecimento da civilização européia, nós brasileiros miscigenados.

Aproveito para descrever o lugar: ao sair da alfândega com a mala de rodinha, como na maioria do aeroportos, a porta se abre automaticamente. Ao sair há uma pequena multidão de pessoas esperando, como na maioria dos lugares, porém  no meio deste volume de gente existe um vazio na forma de um triângulo equilátero longo onde, na sua ponta oposta, está o destino daquele que entra. Diante deste vazio quase minimalista porém orgânico na vivacidade das pessoas que esperam, percebemos no chão um triângulo preto, acho que de pedra, que molda em seu entorno o volume das pessoas de fora do triângulo acima, lá estão os pés destas pessoas, lado a lado na borda do volume de gente, não existe anteparo apenas a figura de ordem do triângulo de pedra preta, o lugar passagem daqueles que chegam, sobre o fundo de pedra cinza, o lugar daqueles que esperam. Diante do choque da ordem, andei alguns metros, pensava onde seria o trem para a cidade que me espera três horas de trilho, rapidamente me aparece uma placa de sinalização me apresentando um trem, seta que indicava a mesma direção da forma do triângulo seta pedra preta -siga em frente- neste momento percebi que saía da cobertura de um mezanino onde se abria a grande sala de  embarque e desembarque, era muito alto, muito aberto e metálico… ela também tinha a forma de seta, era uma grande fatia de torta com sua ponta-centro-geratriz à frente, indicando também o caminho preciso da saída na sua forma arquitetônica. Seguindo o caminho livre diante  daquela perspectiva que geometrava o meu destino, me deparo com um volume ilha no meio do vazio arquitetônico, um volume paralelepipético, ligeiramente arredondado na face que interrompia o fluxo do transeunte, assim como seria sua face oposta, meu destino final naquela arquitetura volumétrica fatia de torta que era reta. Claro que estava lá, nesta face que protuberava o espaço, as várias janelinhas, guichês, com pequenas filinhas onde se vendiam os tickets de trem, em minutos comprei o “tiki”. No meio do volume paralelepipetado de face arredondada havia um vazado que atravessava a forma geométrica  com os banheiros e finalmente do outro lado do volume ilha, isto é, na face oposta também arredondada estava o bar onde se oferecia combinações de refrigerante e cerveja com diferentes tipos de salsichas e cachorros quentes, tudo muito prático. Depois de saciar minha fome com  a salsicha e molhar minha goela com a cerveja quase gelada, pensei -onde será a plataforma 2? Foi só olhar para os lados que lá estavam as esteiras opostas que lentas e descendentes retiravam as pessoas do volume terminal para plataforma perpendicular, já nos momentos finais da arquitetura monumento triângulo bico fino final do fluxo social democrata onde é mais fácil pegar um trem do que um táxi.

Escorregando pela esteira em declive fui tomado pela compreensão do modernismo, que pelo menos naquele lugar e por aquela sociedade, conseguiu realizar ou pelo menos se aproximar do sonho utópico de unir o funcionalismo arquitetônico, incluindo aí o desenho (industrial) com a perspectiva de igualdade social, tomado por esta emoção saindo de um Brasil amado(!?)(o que é de fato este nosso amor pelo Brasil!?) e esfacelado por nosso destino trágico, que desta vez se manifesta pela corrupção em carne viva que, machucando nossos sonhos quase infantis/messiânicos de liderança política, estava lá neste mundo quase paralelo e já me preparava para começar a escrever no caderninho o embrião deste texto.

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Diante desta  arquitetura, do desenho, das máquinas e da organização, tudo parece  até uma existência funcional fria, mas é simples, objetiva e fácil. Parece que o sistema está aberto para ser humano, o sistema é de fato a extensão das necessidades coletivas deste. No Brasil/Rio quando se chega no aeroporto encontramos uma relação de corpos, da fila de imigração, do formulário da alfândega ao olhar, do olhar dos alfandegados, da demora das malas, as ofertas do Duty Free, às vezes até com música e mulatas, a saída uma pequena multidão de corpos e ofertas, táxi, câmbio, ajuda, tudo acontece no corpo, numa mistura de gentileza e malandragem sistêmica, que ganha um pouco aqui e perde muito ali.

O encontro daquele lugar trânsito arquitetônico, aeroporto-train esclarece o trabalho de alguns artistas dinamarqueses como a síntese metálica e limpa das inesperadas brincadeiras de Jeeppe Hein,  na objetividade fenomenológica do Olafur Eliasson, na subversividade sintética do SuperFlex ou na crítica cartoon Michael Elmgreen & Ingar Dragset. Em todos eles, mesmo quando críticos, existe uma fé no futuro, uma fé na ordem e na tecnologia, acredita-se na vontade e na capacidade de transcendência humana. O corte é seco, a crítica é afiada, a operação é limpa e direta, a mente tem o total domínio sobre o corpo, ápice do acontecimento Platônico. É isso que é estranho, talvez estes sejam os verdadeiros seres do presente que para nós mais parece futuro, parece que não existe o medo histórico sistêmico. Tudo está preparado para o acontecimento social civilizado, a carne é equilibradamente constante não como lá, no Bras(a)il, misturada informe, romanticamente atrasado no estado social, tudo tem a personalidade do sujeito, na abertura de uma porta, no trocar o dinheiro. Em cada meio de transporte, em cada sistema de comunicação tem o coeficiente de subjetividade, tem sempre um corpo no meio do caminho.

Enfim, sem uma questão de julgamento de valores, até porque lá tudo esta tão no seu lugar que cansa, e até aquele desenho industrial maravilhoso cansa, mas o fato que me parece que lá tudo é mediado pelo desenho, pela arquitetura e pela máquina, as próprias pessoas, tudo parece estar dominado pela “crítica da razão prática”. Existe um acordo de uma artificialidade sócio-mental como anteparo das relações, quase todas as portas abrem sozinhas, não é necessário o esforço do corpo. Diante desta  realidade e passando por outros lugares geradores de pensamento e certas conclusões históricas aproveito para pensar no nosso modernismo ou quem sabe uma parte dele.

 

Muito se fala sobre a ruptura neo-concreta, muito se fala da relações do concretismo com o desenvolvimentismo do anos 50, o concretismo aconteceu diante daquela época, em que parece que o Brasil decidiu se tornar de fato moderno e industrializado, o concretismo e sua geometria mental afirmava a vontade construtiva do ser, a arquitetura teria sua maior participação na conduta histórica e política do Brasil com a construção de Brasília, a arte, mesmo que não respirasse estes ares, projetava estes valores, o Brasil tinha um projeto, havia uma campanha convocando o povo para o desenvolvimento prometendo ao povo um futuro maravilhoso. No entanto algo estava estranho pois o povo que era convocado com vibração para a construção do destino e do futuro do brasil, porém na construção mental e racional do contrato social, o  brilho construtivo ou a utopia construtiva não trazia junto o brilho utópico social, na verdade o povo estava sendo convocado apenas como força de trabalho, como mão de obra, seja ela física ou administrativa. Se você não faz parte do contrato você não desfruta da cidadania, sem desfrutar da cidadania, não se desfruta da construção mental que redige o contrato social, quando não fazemos parte do todo só nos resta a subjetividade. Diante de uma situação evolutiva porém elitista o cidadão comum se retirou na subjetividade de seu desejo participativo ignorado. Assim começou, acredito que não de forma politicamente consciente, mas sintomática, a ruptura neo-concreta. O neo-concretismo ou os auto intitulados neo-concretos trouxeram a subjetividade para o concretismo, desafiaram o concretismo e o sonho desenvolvimentista da elite dominante e alienante que queria a estética moderna, a revolução moderna, mas não queria aceitar os pressupostos básicos, sua ideologia de integração do ser humano ao funcionalismo da arquitetura e ao sistema social, ou quem sabe ao urbanismo social, o modelo brasileiro era elitista, só queria a fachada, não queria o conteúdo.

Diante da subjetividade, e da negação da contribuição reflexiva a um projeto de cidadania nacional depois da subjetividade só sobra o corpo e é nesta direção que os ícones neo-concretos Lygia e Hélio seguiram o seu caminho. Curiosamente é por aí que vai se movimentar a população, o samba, a anos dominante na cultura popular, já está organizado nas escolas de samba e tem nos anos sessenta seu momento de explosão com a adesão de uma classe média antenada que também desconfiada do projeto nacional, se sente, se não fora, com poucas possibilidades diante do modelo de estado. O que é a escola de samba, principalmente naquele tempo em que a cultura do espetáculo ainda não havia dominado a cena? Ela é a manifestação total e subversiva, diante do status quo racionalista, de subjetividade máxima. Ao povo foi negada a participação do coletivo no contrato social, o povo desenvolveu seu próprio corpo coletivo, no samba, na dança, na noite, como o negro escravizado sobreviveu culturalmente pela capoeira candomblé atabaque batucada oxalá e sei lá, a escola trouxe o resto do povo misturou e unificou aqueles que estavam fora do modernismo ocidental. Não é a toa que o Hélio foi  parar na mangueira, no morro, no samba, inclusive como passista, o corpo em delírio.

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Essa pode ser a nossa verdade e a nossa tragédia e quem sabe a nossa beleza, diante do modernismo que não incluiu o cidadão, diante desta deformação que é o nosso contrato social vivemos sob o anteparo do corpo, numa certa anarquia social para o bem e para o mal.

 Ernesto Neto