A capacidade de ressoar
Por Gabriel Lemos
Comecemos a música pelo tema
Quando fui convidado para escrever um texto sobre um tema tão abrangente quanto ocupação, fiquei por alguns dias pensando em escrever sobre as filosofias de John Cage (em homenagem ao seu aniversário de 100 anos) e o esotérico mundo de Karlheinz Stockhausen, devido à capacidade de influência que ambos têm no universo da música. Porém, qual o propósito de fazê-lo? Muito já foi dito e escrito pelos próprios ou terceiros. Por que escrever sobre eles numa revista virtual de crítica de arte que se propõe falar de ocupação?
Portanto, preferi assumir outra tarefa: escrever sobre alguém com um corpo de trabalho tão interessante quanto o dos dois, e que de alguma forma no vetor do tempo, ocupou (mesmo que brevemente) um ponto equidistante entre ambos.
O objetivo desse texto é pôr em evidência a vivacidade de Cornelius Cardew (1936-1981), compositor e militante político inglês, que ocupou este planeta do mesmo modo que um cometa traça sua trajetória no céu: iluminando. Filho de um conhecido ceramista inglês chamado Michael Cardew, Cornelius começou seus estudos de música através da prática do coral da igreja local; entre os dezessete e vinte um anos estudou piano, violoncelo e composição na Royal Academy of Music em Londres. Após esse período de estudos, o compositor trabalhou entre 1958 e 1960 em Colônia, na Alemanha, como assistente de Karlheinz Stockhausen, na elaboração das partituras de sua obra megalomaníaca Carré. Incumbido de auxiliar na escrita de partituras da composição serial desenvolvida para uma orquestra de 80 integrantes (dividida em quatro grupos distribuídos pelo espaço da apresentação) e uma média de 14 coristas para cada subgrupo, Cornelius mostrou grande habilidade na elaboração das partituras, assim como um nítido talento para a improvisação. Também em 1958, Cardew presenciou uma série de apresentações de peças compostas por John Cage e executadas por David Tudor, marcando profundamente o compositor. Durante os próximos dois terços da década de sessenta, o inglês atuaria na Grã-Bretanha como divulgador da música experimental norte-americana, executando e organizando apresentações de obras de Morton Feldman, La Monte Young, Christian Wolff e Earle Brown.
Imerso no universo experimental da música indeterminada, e abandonando o rigor de técnicas de composição serial, Cornelius Cardew trabalhou durante 1963 e 1967 em sua partitura épica: Treatise, composta apenas de gráficos – sem uma bula explicativa rígida. A peça visa inspirar uma situação de improviso musical orientada visualmente. Apesar de as 193 páginas de gráficos não apresentarem indicações de como lê-la, ela foi construída utilizando-se de conceitos oriundos da Gestalt, adquiridos pelo compositor após estudos de design gráfico, profissão que Cardew desempenhou até o resto de sua vida.
Após essa obra, o que sucede é uma série de peças que se valem de gramáticas notacionais distintas, que visam situações coletivas de improviso musical ou performático. A partir desse período, o compositor se engajaria cada vez mais na militância política, inquieto por questionamentos sobre o papel social da arte (art for whom, ou “arte para quem”). O interessante desse período da vida do compositor é que ele escreve um livro panfletário Maoísta chamado Stockhausen Serves Imperialism onde, costurado por uma propaganda de ideais retirados do livro vermelho chinês, o autor nega todas as suas referências musicais anteriores, principalmente Karlheinz Stockhausen e John Cage:
In my early career as a bourgeois composer I had been part of the ‘school of Stockhausen’ from about 1956-60, working as Stockhausen’s assistant and collaborating with him on a giant choral and orchestral work. From 1958-68 I was also part of the ‘school of Cage’ and throughout the sixties I had energetically propagated, through broadcasts, concerts and articles in the press, the work of both composers. This was a bad thing and I will not offer excuses for it, […][2] (CARDEW, Cornelius. Stockhausen Serves Imperialism, Londres: Latimer New Dimendions Limited, 1974, p. 33. Disponível em: <www.ubu.com/historical/cardew/cardew_stockhausen.pdf > Acessado em: 20 de ago de 2012)
Do ano de 1972 em diante, Cardew compôs músicas para piano com trechos de melodias de canções folclóricas inglesas, o que evidenciava seu foco na agitação de reuniões populares e festas. Durante esse período, até o fim precoce de sua vida, o compositor esteve presente na discussão de várias causas sociais e participou de diversos movimentos que questionavam as ações políticas da Grã-Bretanha dentro e fora de seu território. Em 13 de maio de 1981, Cornelius Cardew morreu, vítima de um atropelamento de carro, cujo motorista não foi identificado. Devido ao seu envolvimento com movimentos comunistas, amigos como John Tilbury (autor de sua biografia A Life Unfinished ), ainda hoje suspeitam de um assassinato por parte do MI-5 (inteligência britânica).
Cornelius foi um cometa que poucos tiveram a chance de presenciar com seus próprios olhos. Aqueles que tiveram contato com o compositor guardam um enorme carinho por ele e sua energia incansável nas causas sociais e no uso da linguagem musical. Em retrospectiva, nota-se que sua vida foi marcada por constantes revoluções.
Sobre a Tradução de Towards An Ethic of Improvisation (Cornelius Cardew)
O texto que serviu de base para essa tradução foi extraído do site UbuWeb, e, devido ao fato de durante o processo de tradução eu não ter tido contato com a versão original publicada pela Peters Editions, tentei conservar ao máximo a diagramação do texto como apresentada pelo site, com algumas exceções, em que citações muito longas e notas de rodapé foram inseridas segundo a ABNT. Além disso, fiz questão de conservar entre parênteses todas as vezes – salvo uma exceção – em que a palavra play e suas derivações aparecem. Essa escolha reflete a intenção de deixar claro o caráter de brincadeira, ou melhor, de jogo[3], que envolve o tipo de prática da qual o autor se refere. Assim, também me preocupo em salientar que, em português, denominamos “tocar” ao ato de tocar música. Ao passo que em inglês e alemão é nomeado – respectivamente – play e spielen, que traduzidas para o português ficam: brincar, jogar e tocar. Outro aspecto que mostra a presença do tradutor no texto é um grifo nas palavras “inocentes musicais”. Neste caso, me utilizei desse recurso para salientar a distinção entre a linguagem musical tradicional, que é desenvolvida numa educação formal, e a postura ideal da qual o autor é a favorável.
Assim, acredito ter conseguido deixar claras, e sem alterações de significado ou sentido, as ideias, por vezes confusas e complexas, de Cornelius Cardew. Por isso, agradeço ao corpo editorial da revista Maré por sua atenciosa ajuda na revisão e principalmente a Daniel Rubim e Isabela Rjeille pela ajuda nos detalhes na finalização do trabalho.
Por uma ética da improvisação
Por Cornelius Cardew
Traduzido por Gabriel Lemos
Eu estou tentando pensar numa variedade de virtudes e pontos fortes distintos que possam ser desenvolvidos pelo músico.
Minha maior dificuldade em preparar este artigo concentra-se no fato de que o vício gera discussões fascinantes, em contrapartida, virtudes são melhor constatadas em ação. Portanto, decido por utilizar um procedimento ilustrativo.
Quem poderia não se comover com a biografia de Florence Nightingale, publicada na Enciclopédia Britânica?
Dessa mesma maneira, a carreira do filósofo Ludwig Wittgenstein (irmão do famoso pianista que tocava exclusivamente com a mão esquerda e que imigrou para os Estados Unidos) – o qual incidentalmente nos apresenta com diversos insights sobre música em seus escritos – serve de exemplo igualmente impressionante e ilustrativo da problemática em questão.
Ele utilizou grande quantia de herança para doar a um prêmio literário. Estudos em lógica o levaram a publicar Tractatus logico-philosophicus (1908), no qual escreve ao final: “6.54 Minhas proposições elucidam dessa maneira: quem me entende acaba por reconhecê-las como contrassensos, […]”[4] e na introdução escreve: “[…] a verdade dos pensamentos aqui comunicados parece-me intocável e definitiva. Portanto, é minha opinião que, no essencial, resolve de vez os problemas.”[5]
Consequentemente, na introdução de seu segundo livro Investigações Filosóficas (1945), ele escreve:
Com efeito, desde que há dezesseis anos comecei novamente a me ocupar com filosofia, tive de reconhecer os graves erros que publicara naquele primeiro livro. […] Por mais de uma razão, o que publico aqui referir-se-á àquilo que outros escrevem hoje. Se minhas anotações não levam nenhum sinal que as qualifique como minhas, não quero também reivindicá-las como minha propriedade. (FLORIDO, Janice; FLORIDO, Janice (Coord.). Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. [S.l.]: Nova Cultural, 1999, p.26)
Em seus últimos escritos Wittgenstein abandona a teoria. No lugar de toda a glória que a teoria pode trazer a um filósofo (ou músico) foi implementada uma técnica ilustrativa. O que segue, é uma de suas analogias:
18. O fato de as linguagens (2) e (8)[6] consistirem apenas de comandos não deve perturbá-lo. Se você quer dizer que elas por isso não são completas, então pergunte-se se nossa linguagem é completa; – se o foi antes que lhe fossem incorporados o simbolismo químico e a notação infinitesimal, pois estes são, por assim dizer, os subúrbios de nossa linguagem. (E com quantas casas ou ruas, uma cidade começa a ser cidade?) Nossa linguagem pode ser considerada como uma velha cidade: uma rede de ruelas e praças, casas novas e velhas, e casas construídas em diferentes épocas; e isto tudo cercado por uma quantidade de novos subúrbios com ruas retas e regulares e com casas uniformes.
19. Pode-se representar facilmente uma linguagem que consiste apenas de comandos e informações durante uma batalha. – Ou uma linguagem que consiste apenas de perguntas e de uma expressão de afirmação e de negação. E muitas outras. – E representar uma linguagem significa representar-se uma forma de vida. (FLORIDO, Janice; FLORIDO, Janice (Coord.). Investigações filosóficas. Tradução de José Carlos Bruni. [S.l.]: Nova Cultural, 1999, p.32).
A analogia da cidade pode ser utilizada também para ilustrar a relação entre o intérprete e a música executada por ele. Certa vez eu escrevi: Ao entrar numa cidade pela primeira vez você a enxerga numa determinada hora do dia e do ano, sob certas condições de luz e clima. Ao ver sua superfície pode-se apenas formular teorias a respeito de como, essa mesma superfície, foi moldada. Ao se hospedar lá, no decorrer dos anos, você vê milhões de mudanças na luz, você vê o interior de casas – ao observá-las por dentro, sua fachada nunca parecerá a mesma. Você acaba conhecendo os habitantes, talvez você case com um deles. Eventualmente, você se transforma em um habitante (um nativo). Você se transformou em parte da cidade. Se a cidade é atacada, você vai à sua defesa. Se ela está sitiada, você sente fome – você é a cidade. Quando você toca a música, você é a música.
Posso ver claramente a incoerência dessa analogia. Mecanicamente – comparando a situação real com uma engrenagem e a analogia com outra engrenagem – a operação não funciona. No entanto, com plena consciência eu contamino[7] minha boca com essas palavras incoerentes, devido ao que elas podem remeter. Nas palavras “você é a música”, algo de imprevisível e mecanicamente real acontece (por pura coincidência dois dentes das engrenagens se encontram, engrenando-as em movimento), a luz muda e uma nova área de especulação se abre, baseada na identidade entre o músico (player) e sua música.
Esse tipo de coisa acontece ao se improvisar. Duas coisas ocorrendo concomitantemente – de forma casual/aleatória – que automaticamente sincronizam e, forçosamente te lançam numa nova fase. Da mesma maneira que em corridas longas de ciclismo um parceiro impulsiona o outro para a próxima volta com um forçoso aperto de mãos. Sim, improvisação é um esporte também, do tipo que necessita de espectadores, onde a mais sutil das interações físicas pode causar alto alívio nos mistérios que representam estar vivo.
Tachado a isso, está a proposta de que improvisação não pode ser ensaiada. Treinamento substitui ensaio e um tipo de disciplina moral é essencial para esse tipo de treino.
Composições escritas se lançam no futuro, mesmo se nunca executadas; a escrita se mantém como algum tipo de referência. Improvisação está no presente, seu efeito pode perdurar nas almas dos participantes – tanto ativos, quanto passivos (audiência) – mas, sua forma concreta, se foi a partir do momento em que a ação se deu, não teve existência prévia ao acontecimento e muito menos há referência histórica disponível.
Documentos, como gravações de improvisações, estão essencialmente vazios, assim que preservam principalmente a forma na qual a coisa se manifestou, dando, no máximo, indícios das sensações, não trazendo consigo qualquer sentido de tempo e espaço.
A essa altura, creio ter definido o tipo de improvisação que gostaria de falar. Obviamente, uma gravação de improvisação de jazz tem sua validade, já que sua referência formal – estrutura melódica e harmônica – nunca está tão abaixo de sua superfície. Esse tipo de validade desaparece quando a improvisação não tem limites formais. Em 1965, eu me juntei com outros quatro músicos em Londres, os quais estavam realizando performances semanais do que eles chamavam de “AMM Music”, um tipo de improvisação extremamente pura, que operava sem sistemas formais ou limites. Os quatro membros originais vinham de uma formação de jazz; quando eu me juntei a eles não detinha nenhum tipo de experiência com jazz, no entanto, não houve problema de linguagem. As sessões, geralmente, duravam duas horas sem pausa ou interrupções, no entanto, ocorriam momentos longos de quase silêncio. A música AMM supostamente admite qualquer tipo de sons, mas os membros da AMM delimitaram suas preferências. Uma abertura para a totalidade dos sons implica numa tendência longe das tradições musicais de estrutura e apontam sentido à informalidade. Governando essa tendência – direcionando[8] internamente – existem estruturas musicalmente tradicionais como o saxofone, piano, violino, guitarra, etc. , e em cada um deles reside uma porção de história da música. Ecos mais longínquos da história musical entram através do transistor de rádio (usado como instrumento de forma pioneira por John Cage). No entanto, não é privilégio da música ter uma história – sons também têm história. Indústria e tecnologia moderna introduziram os sons da máquina e da eletricidade aos sons primitivos do trovão, das erupções vulcânicas, avalanches e ondas do mar.
Sons informais têm influência sobre nossas respostas emocionais, algo que música formal não tem; nesse sentido, os sons atuam subliminarmente, ao passo que a formalidade atua mais no nível cultural.
Essa é uma possível definição pela qual a AMM pode ser considerada experimental.
Nós estamos procurando sonoridades e suas respectivas respostas, ao contrário de simplesmente pensando nelas, preparando e produzindo-as. A busca se utiliza do som como meio e o músico está no âmago dessa busca.
Em 1966 eu e outro membro do grupo investimos em um segundo equipamento de amplificação para as guitarras, visando balancear o som. Naquela época estávamos tocando semanalmente em uma pequena sala de música da London School of Economics – onde mal cabia nosso equipamento. Com a nova aparelhagem, começamos explorar uma gama de pequenos sons audíveis através do uso de captadores e microfones de contato ligados em diversos materiais – vidro, madeira, metal, etc. –, assim como usando outros gadgets, que iam de baquetas até baterias alcalinas ligadas em coqueteleiras. Ao mesmo tempo, o percussionista estava expandindo na direção dos instrumentos de notas como xilofone e concertina e o saxofonista estava utilizando violino, flauta e um tipo de instrumento de cordas construído por ele. Em adição, dois violoncelos foram amplificados com o novo equipamento e o guitarrista estava criando uma predileção por cafeteiras e latas de todo tipo. Esse arranjo prolífero de fontes sonoras criou um ambiente nessa pequena sala, que era praticamente impossível fazer a distinção entre quem ou que parte do ambiente contribuía para as ondas sonoras. Nesse estágio, os ensaios (the playings) mudaram: enquanto indivíduos, fomos absorvidos por um processo de composição que qualquer tipo de virtuosismo era insignificante. Dei-me conta, também, da impossibilidade de se gravar com fidelidade sessões de um tipo de música que está diretamente ligada às particularidades da sala em que se toca – seu formato, propriedades acústicas, até mesmo a vista das janelas. O que a gravação produz é um fenômeno distinto, algo mais estranho do que a sessão em si, já que o que se ouve na fita ou disco é algo completamente dissociado das condições naturais. Qual é a importância dessas condições naturais? O contexto natural proporciona a partitura na qual os músicos (the players), inconscientemente, interpretam ao tocar (playing). Não uma partitura explicitamente articulada na música, portanto, indiferente ao ouvinte – distinguindo-se da música tradicional – , coexiste inseparavelmente da música, estando lado a lado com ela e sustentando-a.
Certa vez, em uma conversa comentei que partituras como a de LaMonte Young (por exemplo, Draw a straight line and follow it), devido a sua inflexibilidade, podem te tirar de você mesmo, estendendo-o numa forma que raramente ocorreria espontaneamente. A isso, o guitarrista acrescentou: “você tem pernas penduradas lá em baixo, braços flutuando à volta, vários dedos e uma cabeça” – essa foi uma composição bem estrita.
E isso é verdade: não só o ambiente natural te carrega além de suas limitações, mas perceber o seu próprio corpo fazendo parte desse ambiente é um fator de dissociação, ainda mais forte. Portanto, o ambiente natural em si está dando luz a algo que te carrega como um fardo; você se transforma no meio por onde a música acontece. Nesse momento sua responsabilidade moral se torna difícil de definição.
“Você escolhe os sons que você escuta. Mas, escutar por efeitos é apenas um passo da escuta AMM. Depois de um tempo você para de esquematizar. Comece a caminhar e veja aonde isso te leva.”
“Confiando que tudo valeu a pena.”
“Engraçado, eu não me preocupo com esse aspecto.”
“Isso significa que você realmente confia?”
“Sim, suponho que sim.”*
*Trecho de um diálogo AMM, de David Sladen.
Música é erótica
Postulemos que a verdadeira apreciação da música está numa entrega emocional, sendo assim, a expressão amante da música se torna graficamente clara e literalmente verdadeira. Qualquer um, familiarizado com bases musicais próximas da concepção oriental, dispensará maiores explicações sobre a afirmação de que a música é erótica. No entanto, a etiqueta exige que o erótico na música seja abordado com prudência e indiretamente. Portanto, maestria técnica não é de valor intrínseco à música (ou ao amor); deve ficar claro para todos que possuem algum tipo de conhecimento de História da música, que Brahms foi maior compositor que Mendelssohn, no entanto, pode-se afirmar que Mendelssohn mostrava mais brilhantismo técnico. Formas elaboradas e técnica brilhante dissimulam a inibição, a relutância em expressar diretamente amor e o medo de autoexposição.
Livros esotéricos amorosos (como o Kama Sutra) e teorias musicais esotéricas como as de Stockhausen e as manipulações seriais de Goeyvaerts perdem atrativo quando estão prontamente disponíveis a todos.
O amor é uma dimensão como o tempo, e não uma coisa pequena, que necessite se fazer mais interessante através de preâmbulos elaborados. O sonho básico de ambos – amor e música – é o da continuidade, algo que viva para sempre. A tentativa prática mais simples na realização desse sonho é a família. Na música, tenta-se eliminar a noção psicológica de tempo, para que possamos trabalhar de forma que o faça perder sua influência sobre nós, relaxando sua pressão. Citando novamente Wittgenstein: “Se por eternidade não se entende a duração temporal infinita, mas a atemporalidade, então vive eternamente quem vive no presente.”[9]
Sobre o repertório da memória musical e as desvantagens de uma educação musical
O grande mérito da notação musical tradicional, assim como da notação tradicional de discurso, como a escrita, reside na capacitação de fazer as pessoas falarem coisas que estão além do seu entendimento. Uma criança de 12 anos pode ler Kant em voz alta, uma criança talentosa pode tocar peças da última fase de Beethoven. Obviamente, pode-se entender uma notação musical sem o entendimento da capacidade de tudo o que uma notação pode notar. Portanto, abandonar a notação é um sacrifício; isso priva o indivíduo de qualquer sistema formal de orientação, levando-o para regiões desconhecidas. Por outro lado, as desvantagens da notação tradicional residem na sua formalidade. Recentes experimentos em notações interdisciplinares são tentativas de desvio dessa formalidade vazia. Nos últimos 15 anos, vários sistema de notação com propósitos específicos[10] têm possibilitado o florescer de áreas em que se demanda a interpretação improvisada.
Um exemplo extremo disso é o meu Treatise (Tratado) , que consiste em 193 páginas de partituras gráficas, que não possuem instruções sistemáticas quanto à interpretação, limitando-se apenas a algumas sugestões (como uma sequência de cinco linhas vazias e paralelas na parte inferior da página) indicando que a interpretação seja musical.
O perigo nesse tipo de trabalho é que muitos leitores da partitura vão simplesmente relacionar suas memórias musicais às notações postas à sua frente, e o resultado será, meramente, uma salada[11] de todas as referências musicais das pessoas envolvidas. Para tais músicos (players) não haverá nenhum incentivo inteligível para a música, ou a eles próprios, na expansão de suas respectivas educações musicais e experiências.
Idealmente, tal música deve ser tocada por um coletivo de inocentes musicais[12]. Mas, em uma cultura onde a educação musical é tão bem disseminada (pelo menos entre músicos) e, me parece, vem crescendo mais e mais, tais inocentes são extremante difíceis de se encontrar. Treatise tenta localizar – ao se posicionar uma notação que não exija especificamente uma habilidade em se ler notas musicais – tais inocentes musicais, onde quer que eles ainda existam. Por outro lado, a partitura sofre do mal de exigir que se tenha alguma facilidade na leitura de gráficos, ou seja, que se tenha uma educação visual. Ora veja: 90% dos músicos são inocentes ou ignorantes visuais, ironicamente isso exacerba a situação, já que a expressão e interpretação da partitura deve ser audível e não visível. Matemáticos e artistas gráficos acham mais fácil de se ler a partitura do que músicos; eles recebem mais dela. Mas, claro que matemáticos e artistas gráficos geralmente não detêm controle sobre meios sonoros a ponto de produzirem experiências musicais “sublimes”. As minhas experiências mais gratificantes com Treatise ocorreram com pessoas que, por um feliz acaso – (a) tiveram uma educação visual, (b) escaparam de uma educação musical e, (c) no entanto, se tornaram músicos – ou seja, tocam (play) música com todas as forças do seu ser. Ocasionalmente, no mundo do jazz se encontram pessoas com essas características e, mesmo assim, isso é extremamente raro.
Considerações deprimentes como essas levaram-me ao meu próximo experimento em direção a uma improvisação guiada. Esse foi The Tiger`s Mind (A Mente do Tigre), composta em 1967, enquanto trabalhava na cidade de Buffallo. Eu escrevi a peça pensando nos músicos da AMM. Ela consiste somente de palavras. A habilidade em se falar é praticamente universal, e as faculdades responsáveis pela leitura e escrita são muito mais disseminadas do que as habilidades de se fazer desenhos ou músicas. O mérito da The Tiger`s Mind está no fato de que ela não exige educação musical nem educação visual, tudo que ela requer é uma disposição em se entender a palavra escrita [no caso, o inglês (N.T.)] e uma vontade de tocar (no sentido mais expandido e lúdico da palavra).
Apesar desse mérito, é uma pena dizer que The Tigers Mind ainda deixa o musicalmente educado em extrema desvantagem. Eu não imagino qualquer possibilidade de levar em conta o tremendo potencial que pessoas musicalmente educadas mostram, exceto dar o que elas querem: notação musical de extrema complexidade. Os campos mais esperançosos são os da notação de coral ou orquestral, pois ali as personalidades individuais (apesar de alguns músicos formados parecerem discordar) são absorvidas em um organismo muito maior, as quais falam através dos indivíduos como que saídos de uma esfera superior.
Os problemas da gravação
Eu já mencionei sobre esse problema duas vezes. Eu afirmei que documentações, como gravações de sessões de improvisação, estão essencialmente vazias, já que preservam a forma da tal coisa, dando, na melhor das hipóteses, palpites quanto às sensações e, é claro, que não podem trazer qualquer sensação de tempo ou acústica. No final das contas, gravar-se com um grau de fidelidade um tipo de música – que deriva da natureza da sala em que se realiza a performance – é praticamente impossível. Pois o tamanho, seu formato, propriedades acústicas e, até mesmo, a vista da janela dessa sala, produzem um fenômeno separado, algo que é muito mais estranho que o tocar [playing] em si, já que o ouvido na gravação é de fato um registro da própria performance, no entanto, divorciada de seu contexto natural.
Uma citação de Wittgenstein pode nos dar uma pista a respeito da real raiz desse problema. Em seu Tractatus, ele escreve:
4.014 O disco gramofônico, a ideia musical, a escrita musical, as ondas sonoras, todos mantêm entre si a mesma relação interna afiguradora que existe entre a linguagem e o mundo. A construção lógica é comum a todos. (WITTGENSTEIN, Lugwig. Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo: Editora Edusp, 2010, p. 167.)
Essa estrutura lógica é justamente o que está faltando numa improvisação, portanto, é impossível escrevê-la e, muito menos gravá-la.
Todos os problemas técnicos de se gravar algo são exacerbados na gravação de uma improvisação, mas eles se mantêm técnicos e, com um otimismo habitual, podemos supor que eventualmente esses problemas serão resolvidos. No entanto, mesmo que esses problemas sejam resolvidos e, junto com outros que possam surgir, será impossível gravar esse tipo de música por diversos motivos.
Simplesmente, as coisas mais fortes não são viabilizadas de forma comercial no mercado doméstico. Álcool puro é muito forte para o paladar da maioria das pessoas. Energia atômica é aceitável em época de paz na alimentação elétrica de uma rede metropolitana, no entanto, donas de casa se rebelariam contra a ideia de conversores atômicos em suas próprias cozinhas. De forma similar, esse tipo de música não é ideal para se escutar em casa. Não é uma música de fundo agradável para eventos e encontros sociais. Além disso, esse tipo de música não ocorre no ambiente doméstico, e, sim, em um ambiente público, e sua força depende, até certo ponto, da resposta do público. Também por essa razão, não se pode gravar de forma satisfatória em um estúdio; se há uma esperança na gravação desse tipo de música ela se encontra no registro de performances públicas.
Quem se interessa pelo som puro, por mais alta que seja a fidelidade da gravação? Improvisação é uma linguagem espontânea desenvolvida entre players e ouvintes. Quem pode dizer de que modo opera esse tipo de linguagem? Será possível reduzir o fenômeno a impulsos elétricos numa fita magnética e oscilações na membrana de um autofalante? Devido a essa nota reacionária, eu abandono o assunto.
As notícias têm que viajar de alguma forma, e a fita magnética – em última análise – é tão adequada quanto o boato e, certamente, tão imprecisa quanto.
Virtudes que um músico pode desenvolver
1. Simplicidade
Onde tudo se torna simples, esse se torna o melhor lugar para se estar. Mas, como Wittgenstein e sua “contradição inofensiva”, você tem que se lembrar de como chegou até lá. A simplicidade deve conter a memória do quão difícil foi se chegar até ela (a citação relevante de Wittgenstein é de uma publicação póstuma, “Remarks on the Foundations of Mathematics”. O nocivo não é produzir a contradição no lugar onde nem o consistente ou a proposição contraditória têm qualquer tipo de pertinência, não; o que é nocivo é não saber como o indivíduo chegou ao lugar onde a contradição não causa danos.[13]).
Em 1957, quando eu deixei The Royal Academy of Music em Londres, técnicas complexas de composição eram consideradas indispensáveis. Eu adquiri algumas – e ainda as carrego por aí como um tipo de infecção, das quais eu quero constantemente me curar. Às vezes, ocorre-me a tentação de que se infectasse meus alunos, eu estaria pelo menos me livrando delas.
2. Integridade
O que fazemos no evento em si é importante – não apenas o que há em nossas mentes. Geralmente, o que nós fazemos nos diz o que há em nossas mentes.
A diferença entre fazer o som e ser o som. O músico profissional faz os sons (com total consciência que eles são externos a ele); os AMM são os sons que emitem (tão ignorante a eles quanto alguém a respeito de sua própria natureza).
3. Desprendimento (Selflessness)
Para fazer algo construtivo é preciso olhar para além de você mesmo. O mundo inteiro é a sua esfera, se sua visão consegue abrangê-la. Autoexpressão pode facilmente se passar por mero registro – “Eu me lembro que é assim que eu me sinto”. Você não necessita estar preocupado em arranjar para si um modo de viver que possibilite mantê-lo na linha, equilibrado. Dessa forma, você poderá trabalhar e olhar além de você mesmo. Fundações firmes tornam possível se sair do chão.
4. Paciência
Ao improvisar em grupo você deve não só aceitar as fraquezas de seu companheiro, mas também as suas. Ultrapassar seu instinto de revolta contra qualquer coisa que esteja desafinado (no sentido mais amplo da palavra).
5. Prontidão (preparedness)
Para qualquer eventualidade (frase de John Cage) ou simplesmente vigília (awakeness). Posso melhor ilustrar isso como um caso especial de premonição clarividente. O problema em premonição clarividente é que você pode estar absolutamente convencido de que uma de duas alternativas vai acontecer, mas, de repente, você se convence que a outra pode igualmente ocorrer. Com o tempo, esse tipo de oscilação pode acelerar até que as duas se transformam em um borrão. Dessa forma, tudo que se pode dizer é: “Estou convencido de ambos p e, não-p – que em ambos os casos, ela virá e, ela não virá – ou qualquer que seja o caso”. Claro que há uma imensa diferença entre simplesmente estar alerta para algo que pode ou não ocorrer, e a convicção clarividente de que algo irá ou não ocorrer. Nenhuma diferença na prática, mas grande diferença no sentimento. Uma grande intensidade em sua antecipação nesse ou naquele resultado. Assim é com a improvisação. “Aquele que está sempre buscando por uma aparição de Luz, não sabe de onde a própria vem mas nota, com uma estranha confusão, a mais fraca palidez no céu.”[14] (Walter Pater). Isso constitui vigília.
6. Identificação com a Natureza
À deriva na vida: ser levado através da vida; nenhum dos dois constitui uma verdadeira identificação com a Natureza. O melhor é conduzir sua própria vida, e o mesmo se aplica à improvisação: muito semelhante a um velejador, que se utiliza da interação entre as forças naturais e as correntes para orientar seu curso.
Minha convicção é que o mundo da música e o mundo real são Um. Musicalidade é uma dimensão da realidade perfeitamente ordinária. A busca do músico está em reconhecer a composição musical do mundo (assim como Shelley fez em seu romance O Moderno Prometeu ). Tudo o que é tocado pode ser interpretado como uma extensão do cantar; a voz e suas extensões representam a dimensão musical do homem, mulher, criança e animal. De acordo com algumas autoridades, fumar é uma extensão do ato de chupar o dedo; talvez o medo do câncer nos faça, eventualmente, voltar a chupar o dedo. Possivelmente, num futuro ideal, nós, animais, voltaremos a cantar, e deixaremos a madeira, o vidro, o metal, a pedra, etc. acharem suas próprias vozes, libertando-os de nossas torturas (eu ouvi que existem dispositivos capazes de amplificar a volumes audíveis os barulhos e sons internos de materiais naturais).
7. Aceitação da Morte
De um certo ponto de vista, improvisação é a atividade musical mais alta que pode existir, já que se baseia na aceitação das fraquezas fatais, essência e característica mais bonita da música: a transitoriedade.
O desejo de sempre estar correto é um objetivo infame, assim como o desejo por imortalidade. A performance de uma ação vital nos leva mais perto da morte; se não o fizesse, faltaria vitalidade. A vida é uma força para ser usada e se necessário usada ao seu extremo. “Morte é a virtude em nós que nos guia ao nosso destino.”[15] (Lieh Tzu).
[1] “If this word “music” is sacred and reserved for the eighteenth and nineteenth century instruments, we can substitute for a more meaningful term: organization of sounds”. CAGE, John. Silence, Middletown: Wesleyan University Press, 1961, p. 8.
[2] Tradução livre: No meu início de carreira como um compositor burguês eu havia sido integrante da “escola de Stockhausen” entre 1956-60, trabalhando como assistente de Stockhausen e colaborando com ele em um trabalho gigantesco para coral e orquestra. De 1958-68 eu também fiz parte da “escola de Cage” e durante os anos sessenta eu propaguei energicamente, através de transmissões, concertos e artigos na imprensa, o trabalho de ambos os compositores. Isso foi uma coisa ruim e eu não vou oferecer desculpas a respeito disso, […].
[3] “As grandes atividades arquetípicas da sociedade humana são, desde início, inteiramente marcadas pelo jogo. Como, por exemplo, no caso da linguagem, esse primeiro e supremo instrumento que o homem forjou a fim de poder comunicar, ensinar e comandar. É a linguagem que lhe permite distinguir as coisas, defini-las e constatá-las, em resumo, designá-las e com essa designação elevá-las ao domínio do espírito. Na criação da fala e da linguagem, brincando com essa maravilhosa faculdade de designar, é como se o espírito estivesse constantemente saltando entre a matéria e as coisas pensadas. Por detrás de toda expressão abstrata se oculta uma metáfora, e toda metáfora é jogo de palavras. Assim, ao dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, ao lado do da natureza.” HUIZINGA, Johan. Homo Ludens: o jogo como elemento da cultura, 4. ed., São Paulo: Perspectiva, 2000, p. 7.
[4] WITTGENSTEIN, Lugwig. Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo: Editora Edusp, 2010, p. 281.
[5] Idem, Ibidem, p. 133.
[6] No texto original escrito por Cornelius Cardew, os itens são nomeados a. e b. No entanto, a tradução se refere aos itens como linguagens (2) e (8). Elas, por sua vez, fazem referência a dois possíveis sistemas linguísticos distintos descritos anteriormente pelo filósofo na articulação de seu raciocínio onde, numa situação hipotética, um operário transmite ordens a um segundo operário.
N.T.
[7] No texto original é usada a palavra inglesa soil. Podendo apresentar uma outra possibilidade de interpretação, ao traduzir o verbo arar para aro. No entanto, devido à lógica da argumentação feita por Cornelius Cardew – ao julgar as palavras da analogia como incoerentes na tradução ao pé da letra para português– adotei o verbo contaminar. N.T.
[8] No texto original é utilizada a palavra reining, que deriva do substantivo rein, traduzido como rédea. No entanto, devido a uma questão de coerência semântica utilizei o termo direcionando. N.T.
[9] WITTGENSTEIN, Lugwig. Tractatus Logico-Philosophicus, São Paulo: Editora Edusp, 2010, p. 277.
[10] special-purpose notation-systems.
[11] Na versão em inglês o autor utiliza o termo goulash (do húngaro comida de vaqueiro), possivelmente, querendo fazer referência à natureza plural que o prato pode apresentar. Basicamente, o prato é originário da região do antigo império austro-húngaro e têm como ingrediente principal a carne bovina cortada em cubos, podendo ser preparado, também, com carne de porco. À carne (cozida na banha), dependendo da região, pode-se acrescentar o caldo à base de água: cebola, pimentão, páprica, farinha, cominho e legumes diversos. N.T.
[12] Grifo da tradução.
[13] Tradução livre.
[14] Tradução livre.
[15] Tradução livre.