Em direção ao inegociável

Por Marília Loureiro

 

Desde o final de 2010 nos deparamos frequentemente em jornais e noticiários com questões relativas à ocupação e desocupação. Não se trata aqui apenas da ocupação em seu sentido estrito, como a tomada de território, mas de algo que diz respeito a realocações sociais, políticas e econômicas. Tais ocupações – e suas consequentes desocupações – procuraram remodelar algumas situações estabelecidas até então e geraram tensões imediatas. Embora tenham ocorrido em conjunturas locais díspares, em proporções diferentes e levantando questões distintas, estas mobilizações têm em comum uma certa desestabilização do status quo. Da Primavera Árabe ao Pinheirinho, os embates gerados por mobilizações sociais estiveram em evidência.

Falar em ocupação e em mobilização é também acionar o sentido amplo que elas carregam como uma ideia de movimentar-se. O movimento não somente como mudança de lugar, mas como uma ação que percorre o caminho entre a privação e a aquisição, ou ao contrário, da aquisição à perda. Assim, a ocupação – feita por intermédio de mobilização – é um movimento que guarda em si esse jogo de forças entre aquele que irá adquirir e aquele que irá privar-se de algo. Por isso, é possível pensar que ocupar e desocupar são faces de um só movimento.

Essas movimentações em posições sociais, políticas e econômicas – ou ocupações – pretendidas por parcelas da população e as respectivas reações de outras camadas da população tentando impedir a efetivação desses deslocamentos – desocupações – criaram situações de tensão. Internacionalmente vimos no norte da África e no Oriente Médio a destituição de ditadores e suas oligarquias econômicas junto à tentativa de instituição de Estados ocupados pelo povo. Vimos também em dezenas de democracias liberais da América do Norte, América do Sul, Europa e Ásia os movimentos occupy tomarem as ruas em acampamentos movidos por slogans como People over profits [Pessoas acima de lucros], ou We are the 99% [Nós somos os 99%] e ainda None are more hopelessly enslaved than those who falsely believe they are free [Ninguém é mais incorrigivelmente escravizado do que aquele que enganosamente acredita que é livre]. No contexto nacional, por sua vez, nos deparamos com episódios como a desocupação violenta feita pela polícia militar em um terreno na periferia de São José dos Campos, o Pinheirinho, ocupado por cidadãos sem-teto; a “limpeza” da cracolândia que expulsou adictos das ruas em prol da especulação imobiliária naquele local; ou ainda a ocupação do campus da Universidade de São Paulo (USP) pela polícia militar e seus desdobramentos nas reações estudantis que ocuparam a reitoria e a desocuparam mediante força policial.

Não é preciso que seja dito o quão díspares foram tais mobilizações. Mas se a obviedade de sua discrepância nos parece tão nítida, talvez possamos nos questionar em que sentido elas atuam como um conjunto passível de render análises sobre o momento atual. Talvez, como sugeriu Slavoj Žižek, não devêssemos procurar as respostas dessas mobilizações. Elas próprias já estão respondendo a algo. O que nos falta ainda é formular as questões. Isto é, tratar esses movimentos como sintomas que reagem a algo, cujo enunciado ainda precisa ser desvelado. (ŽIŽEK, 2012, p. 25)

Desde 2008, o capital financeiro vem dando sinais importantes de sua fragilidade. Se nos primeiros dois anos de crise (2008 e 2009) as ações de contenção e de regulação da economia estiveram dentro das instituições – Estados, Organizações Internacionais e corporações privadas –, os dois anos seguintes (2010 e 2011) foram marcados por mobilizações sociais de rua. E como há de ser em momentos de crise, regras precisam ser renegociadas – ou no caso do mercado financeiro, a falta de regras precisa ser repensada. Desde o início da crise, em 2008, foram feitas algumas tentativas institucionais para estipular regras que pudessem controlar de forma mais segura a economia à qual estamos sujeitos hoje. Enquanto tais medidas ainda procuravam a efetivação de suas propostas para sanar problemas econômicos, a população civil foi às ruas expor seu descontentamento com relação às regras do jogo, em que o cidadão tornou-se cliente, direitos tornaram-se produtos, público tornou-se privado e o Estado, mercado. Mais do que um levante da Política frente à preponderância da Economia, vimos uma politização civil frente à rigidez de instituições pautadas pelo mercado.

Embora a economia exerça um papel preponderante, juntamente a ela fatores peculiares a cada conjuntura contribuíram para acontecimentos ocorridos nos diferentes lugares. Em dezembro de 2010, a primeira das revoltas da Primavera Árabe, que tirou do poder o ditador da Tunísia, Ben Ali, teve como estopim um jovem tunisiano que ateou fogo ao próprio corpo em frente ao prédio do governo local após ter dito a seguinte frase: “Se você não me olhar, eu vou me queimar”.  Alguns meses depois, em maio de 2011, foi a vez de uma onda de movimentos que ficou conhecida como Los indignados tomar as ruas de mais de 50 cidades espanholas uma semana antes das eleições locais.  Cidadãos que não se viam representados por partidos e descontentes com as medidas aprovadas pelas instituições políticas e econômicas do país clamavam por mudanças mais radicais para solucionar problemas de diversas ordens causados pela crise econômica. Em janeiro de 2012, na periferia da grande São Paulo, um pedido de reintegração de posse mobilizou quase dois mil policiais militares que usaram da força para retirar cerca de nove mil pessoas que ocupavam o terreno abandonado do Pinheirinho havia sete anos. Poderíamos, nesse ínterim entre 2010 e 2012, enumerar aqui outros tantos episódios de embate, mas não é preciso de tantos exemplos para enxergarmos que situações como estas têm colocado em questão pontos vitais do sistema em que estão inseridas.

A Primavera Árabe colocou em xeque, entre outras coisas, o modelo político ditatorial ao qual tantos países da África e do Oriente Médio estavam – ou ainda estão – sujeitos. Os movimentos occupy, por sua vez, têm mostrado descontentamento em relação às políticas econômicas da democracia liberal. O caso do Pinheirinho, em São Paulo, embora mais pontual, também coloca em discussão algo importante, a saber, as fronteiras da propriedade privada e de seu uso social. E assim por diante, eclodiram mobilizações que, cada qual ao seu modo, expõem os limites dos seus respectivos sistemas e a vontade de negociá-los.

Todo sistema, seja ele teórico ou prático, guarda pontos inegociáveis. São aquelas normas que os fundam e que por isso não admitem mudança, pois isso implicaria na queda desse sistema e na entrada de um outro. Dentro do sistema da chamada Comunidade Internacional, uma das funções da Política consiste justamente na negociação dessas normas, ou, por outro ângulo, consiste em decidir quais fatores serão inegociáveis. De maneira simplificada é possível pensarmos que em um dos lados estão as forças que procuram negociar e transformar o dito inegociável daquele sistema vigente, e do outro lado estão as forças que tentam manter intocados pontos tão caros à manutenção de seu sistema.

Negociar o inegociável. Essa parece ser uma característica comum a essas mobilizações tão distintas entre si. Parte delas, como a Primavera Árabe e o Pinheirinho, parecem não só ter respondido sua insatisfação com mobilizações, mas também terem conseguido enunciar propostas que lhes convêm – ainda que tenham deixado no ar discussões mais profundas sobre os assuntos que levantaram. Em outras delas, como na maior parte dos occupy, percebe-se que embora respondam com veemência a situações que lhes descontentam, não tenha havido ainda a elaboração de quais são os verdadeiros problemas e as propostas possíveis a eles. Como nos adverte Vladimir Safatle “[…] devemos lembrar que a verdadeira mola do poder não é a imposição de uma norma de conduta, mas a organização das possibilidades de escolha.” (SAFATLE, 2012, p. 33).

E na procura por esta mola do poder da qual nos fala Safatle, percebemos que talvez seja mais desejável – e viável – aumentar o espectro de escolha, que hoje nos parece tão limitado dentro das “liberdades do capital”, à imposição de uma nova norma de conduta. Nessa busca é preciso lembrar a importância de diluir a falsa dicotomia que existe entre revolução e reforma, pois dividi-las em polos opostos como escolhas que se anulam é retirar a potência que opera tanto numa quanto noutra. Nenhuma ação política parece ser capaz de criar propositalmente uma revolução, já que esta é da ordem do imprevisível, do imponderável. Por isso, crer apenas na revolução como solução política é imobilizar-se frente à contingência dos processos históricos. Assim, embora a revolução não surja apenas da vontade em fazê-la, é preciso enunciar as questões que realmente procuram a negociação do inegociável e persegui-las no interior desses processos históricos.

Talvez o alargamento das possibilidades de escolha tenha sua importância no sentido que enfrenta as imperfeições das circunstâncias, isto é, que lida com as matizes complexas que estão postas na práxis. Da mesma forma, não podemos esquecer que “o pensamento age quando pensa” (HEIDEGGER, 1947, apud SAFATLE, 2012), ou seja, é ele quem transforma nossa compreensão sobre os fatos e quem pondera os reais problemas aos quais devemos nos ater. Assim voltamos a um ponto tão evidente, porém por vezes deixado de lado: revolução e reforma, pensamento e práxis são dois lados de uma só intenção que se protegem e reforçam quando unidos, mas que podem também nos levar a uma querela sem fim – e sem fins – quando contrapostos.

Na tensão criada pelas ocupações surge justamente o momento em que práxis e teoria embaralham-se, reforma e revolução misturam-se, de modo que não é possível distingui-las, pois afinal são duas faces de uma só coisa. E na tentativa de expandir os limites do negociável parece estar implícita a ocupação como movimento que transita da perda à aquisição, ou seja, não somente como mudança de lugar, mas como mudança de estado. Por isso, essas mobilizações – das mais pontuais às mais abrangentes – tem importância no sentido que operam em direção ao inegociável.

 

 

Bibliografia

 

OCCUPY / [David Harvey… et al.]; [tradução João Alexandre Peschanski… et al.]. – São Paulo : Boitempo : Carta Maior, 2012.

SAFATLE, Vladimir. A esquerda que não teme dizer seu nome – São Paulo : Três Estrelas, 2012.