Inverso por José Bento Ferreira
Inverso
Destruído o espaço de representação, ficou difícil recriar o mistério da poesia nas artes plásticas.
Moisés não está no túmulo de Júlio II. Está no Sinai vendo a idolatria dos judeus, ou a glória do Senhor. Os cidadãos de Calais não estão no pedestal de Victoria Gardens, estão na França, caminhando até os soldados ingleses para se entregar e salvar a cidade.
A representação remove a escultura da realidade. Sem dúvida a presença no espaço físico, o túmulo ou o parque, sempre é um elemento importante. Mas espaço físico e espaço de representação não se comunicam.
As esculturas contemporâneas não estão em nenhum outro lugar senão aqui e agora. Atuam sobre o mundo ao redor, buscam transfigurá-lo. Não precisam representar outro mundo porque a autonomia desse espaço transfigurado está assegurada.
A pintura também rompeu a representação. Abstração e colagem trouxeram-na para a superfície plana dos quadros, onde confronta o espaço físico.
Não há o que lamentar, a arte ficou menos ingênua e mais livre.
Mas as salas brancas das galerias, museus etc. tornam tudo excessivamente pensado e esperado. A arte ficou artificial.
Algo bem diferente pode ser experimentado na exposição de Mariane Abakerli e Karen Kabbani no ateliê 397, de Rafael Campos Rocha.
A fachada amarela pintada com esmero na rua Wisard é enganosa. Lá dentro, a sensação é de que se anda por uma casa em construção. Não há melhor ilustração para a idéia do crítico Alberto Tassinari de que o espaço moderno é um “espaço em obras”.
No corredor estreito por onde se entra, portas parecem ter sobrado de alguma reforma. Ao notar que estavam instaladas na parede, não estranhei. Onde eu trabalho também há portas que se abrem para paredes. Tudo certo.
Então vi os “tapetes” de Mariane Abakerli, enrolados e sustentados por pequenos cavaletes. Alguns mais bonitos, outros mais comuns. Um deles fiquei sabendo ser um autêntico tapete persa de valor inestimável.
Tapetes enrolados se assemelham a corpos. Essa impressão é inevitável. Estranhamente levantados do chão, ficam ao relento, no ar frio e úmido. Era um raro dia de inverno na cidade que oscila entre Atacama e Amazônia.
Dentro de uma sala reconheço as linhas verticais da pintura de Karen Kabbani. Não escorrem, são meticulosamente desenhadas. Apenas na parte superior, no entanto, massas de tinta tomam corpo, mostram do que são feitas as linhas da pintura e valorizam a disciplina com que cada uma se restringe apesar da viscosidade das tintas e da imprecisão das mãos.
Não há quadros. Uma pintura abraça os quatro lados da sala, interrompida apenas pela porta e a janela. A pintura contém fotografias dispostas entre as linhas. Fotos em meio a uma pintura abstrata. Um aparelho de chá, uma sala vazia, paredes, pintura. E, é claro, a porta e a janela, que acrescentam o terceiro elemento: a realidade.
Apenas muito tempo depois sou avisado das “portas” de Mariane. Na verdade quando eu ia embora. São três portas presas à mesma parede ao longo do corredor de acesso. Uma quarta porta seria a do “397”, que dá para a rua, aquela que, como se diz, é serventia da casa.
Naquele corredor, de repente tudo fez sentido. Não eram restos de obras. Eram as obras.
Portas sujas de tinta. Uma sem trinco, outra com o trinco ao contrário. Penduradas como quadros. Projeções em série da porta real, mas pertencentes a outra ordem de realidade. Assim como os tapetes. Assim como as pessoas que estavam lá, vistas através da porta e da janela da sala, o mundo emoldurado por uma pintura.