36 hours, de Walter Hopps, e algumas reverberações
Por Laurem Crossetti
O ano era 1978, mas a questão ainda é próxima aos dias de hoje: não é tão fácil, para um número significativo de artistas, encontrar um espaço tradicional para expor suas obras e, ainda por cima, obter o aval de um curador renomado. Essa constatação foi o pontapé inicial para a realização da exposição-evento 36 Hours, organizada no fim dos anos 70 por Walter Hopps no MOTA – Museum of Temporary Art, em Washington, D.C.
A ideia surgiu durante uma conversa entre Hopps e Deborah Velders, que haviam trabalhado juntos na National Collection of Fine Arts (hoje Smithsonian American Art Museum). Naquele momento, Deborah havia acabado de entrar para a equipe do MOTA e comentava com Hopps como era difícil para a maioria dos artistas entrar em contato com um curador do seu porte. Ele então confessou que sempre tivera vontade de realizar “algo”, uma exposição em que qualquer pessoa pudesse participar trazendo uma obra sua, sem qualquer tipo de critério de escolha ou censura. Ele próprio estaria presente, cumprimentando a todos e ajudando a pendurar as obras na parede. Quando Deborah perguntou quanto tempo ele aguentaria ficar nessa situação, Hopps respondeu: cerca de um dia e meio. Teve início aí a proposta de 36 Hours.
Segundo Hopps, em entrevista publicada no livro Breve História da Curadoria [1], de Hans Ulrich Obrist, cinco andares foram disponibilizados para a proposição – normalmente apenas dois pisos eram utilizados para fins expositivos. Prevendo a grande quantidade de pessoas que iriam aparecer, o curador solicitou à equipe do MOTA que liberasse o espaço do porão e dos outros dois andares do prédio. Questionado sobre como sabia que haveria tantos interessados na proposta, Hopps afirmou: “Se você disser que vai montar uma exposição em que todos podem trazer algo para ser exposto, as pessoas virão”. Cerca de 450 obras fizeram parte da exposição. Mesmo sendo aberta a participação para qualquer pessoa, artistas ou não, o curador relata que a grande maioria dos presentes eram, de fato, envolvidos na produção de arte – e, para muitos, essa foi a primeira oportunidade que tiveram de exibir seu trabalho.
Consta que o evento foi registrado em vídeo e que todas as obras foram catalogadas, mas ainda é difícil ter acesso a qualquer material referente a 36 Hours. As informações do segundo parágrafo desse texto, por exemplo, tiveram como fonte de referência um comentário feito pela própria Deborah Velder, em um Flickr [2]. Além disso, o Museum of Temporary Art foi encerrado em 1982, e todo seu arquivo (que foi doado ao Smithsonian Institute) encontra-se indisponível para consulta on line. De toda forma, em uma breve pesquisa pela internet é possível encontrar diversas reverberações das ideias relacionadas à curadoria de exposições propostas por Walter Hopps.
Para citar apenas algumas das homenagens mais diretamente inspiradas em 36 Hours, encontramos We are all in this together, organizado pela Bureau Gallery, localizada na Inglaterra, e State of the art/Art of the state, no Cameron Art Museum, Estados Unidos. Além disso, incluo aqui A presença das ideias, organizada por mim como parte da monografia de conclusão de curso em Artes Visuais pela Universidade de Brasília (UnB). Comentarei brevemente as duas primeiras propostas, observando suas aproximações e diferenças entre o projeto realizado por Hopps, mas poderei discorrer melhor sobre a última citada, já que estive presente em todos os momentos do seu desenvolvimento.
We are all in this together foi uma iniciativa realizada em abril de 2011 pela Bureau Gallery, tanto para comemorar o quinto aniversário de existência da galeria como também para celebrar o momento vivido na cena da arte contemporânea no Reino Unido. O espaço, localizado em Manchester, é dirigido por Sophia Crilly, que decidiu expandir o tempo original da ação e manteve o local disponível para o evento por 36 dias. Durante esse período, qualquer artista residente no Reino Unido poderia trazer seu trabalho, sem nenhum tipo de critério de avaliação e sem a chance de ser negada sua participação.
Segundo a página virtual criada para a documentação da ação [3], We are all in this together paga tributo a 36 hours e, através dessa experiência, buscou-se criar um panorama do que estava sendo produzido no país, tentando também identificar possíveis tendências que transpassassem os trabalhos. Além disso, por conta do longo tempo dedicado à construção da exposição, questionou-se como uma mostra – ou uma série de mostras, por conta da constante transformação – poderia construir um sentido sem saber previamente as obras que a constituiriam. Estão documentadas na página do projeto obras de 100 artistas participantes.
Logo em seguida a essa experiência, em 6 de maio de 2011, aconteceu a proposta de State of The art/Art of The state, em Wilmington, Carolina do Norte, nos Estados Unidos. Artistas nascidos ou residentes no estado tiveram 24 horas para levar uma de suas obras até o Cameron Art Museum, e ainda tiveram a chance de conhecer importantes curadores de diferentes museus, tais como Guggenheim e Tate Modern. No texto de apresentação da proposta, disponível no site da instituição [4], deixa-se claro que a exposição foi uma forma encontrada para homenagear o espírito criativo e crítico de Hopps – assim, buscou-se assegurar um tratamento semelhante ao idealizado por ele em 36 Hours: cada artista participante seria recebido por um curador, que o saudaria, apertaria sua mão e definiria o local para de sua obra. No total, foram expostas obras de 611 artistas diferentes.
Depois de sabermos um pouco mais sobre esses dois casos, é interessante observar a situação em que me meti quando decidi realizar uma pequena exposição como parte do meu trabalho de conclusão de curso. A realização dessa exposição seria o ponto de partida para o trabalho escrito, onde realizei paralelos entre esse meu projeto, 36 hours e JAC 72, realizado por Walter Zanini, na época em que foi diretor do Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo. É importante salientar que essas referências só surgiram em pesquisa posterior à realização do evento, e de maneira nenhuma tive a pretensão de realizar algo que pudesse ser comparado ao trabalho desses dois incríveis curadores; apenas julguei interessante comentar o meu processo em paralelo a essas duas exposições que se destacaram durante minha pesquisa.
Pois bem. A vontade inicial da exposição era proporcionar um espaço para ser ocupado por toda e qualquer pessoa interessada em expor suas obras, sem avaliação de portfólios, comissão de seleção, júri, aprovados ou reprovados. Enquanto amadurecia esse desejo inicial comecei a ler o livro Razões da crítica [5], de Luiz Camillo Osorio, e, em meio a reflexões sobre o papel e o lugar da crítica de arte em nossos dias, deparei-me com a seguinte pergunta: “Será que nós ainda estamos dispostos a sentir a presença das ideias?”. Havia encontrado nessa inquietação o título para a minha proposta, A presença das ideias.
Sem ter nenhuma experiência prévia com organização ou produção de exposições e sem contar com nenhum orçamento ou apoio financeiro, todo o evento foi realizado da maneira mais simples possível. O espaço utilizado foi o da Galeria da UnB, uma sala comercial com cerca de 30 m² localizada na quadra 406 da asa norte – um espaço interessante, porém um pouco abandonado pela instituição. Não havia nenhum servidor responsável pelo local, então tive que funcionar como equipe de limpeza, de segurança, de produção e de montagem dessa empreitada. Definidos nome, lugar e data para o evento – 04 de novembro de 2010 – dei início à divulgação da proposta. Além de divulgação pela internet, vários cartazes foram dispostos em diferentes locais da Universidade e também em lojas e cafés nos arredores da galeria.
No dia marcado, o espaço estava pronto, limpo e vazio, esperando ansiosamente virar uma exposição de arte. Durante as cerca de 5 horas de duração do evento, pouco mais de 40 pessoas passaram pelo espaço. Elas conversavam, discutiam e definiam locais para pendurar suas obras, outras realizavam interferências na montagem que já havia sido feita, ainda houve aquelas que interferiam nos trabalhos alheios e uma pequena parcela apenas observava essas cenas. Diversos desenhos, aquarelas, pinturas e algumas fotografias ocupavam as paredes da galeria, além do chão coberto de bolinhas de gude após um jogo realizado pelo grupo Corpos Informáticos. No total, contei com a participação de dez artistas e um coletivo, cada um colaborando com quantas obras quisesse expor. Apesar de o caos ter sido um pouco maior do que o imaginado, o resultado da experiência foi muito fértil – já se passaram quase dois anos e, para mim, A presença das ideias continua gerando reflexões.
Mesmo que meu projeto não tenha sido inspirado prévia e diretamente no trabalho realizado por Walter Hopps, é interessante perceber como diferentes experiências baseadas em uma questão muito similar – a possibilidade de uma exposição de arte sem júri, sem critérios de escolha e sem “reprovados” – consegue formular entre si um diálogo, composto por diferenças, especificidades e similitudes.
Diferentemente do que foi proposto por Hopps e pelos projetos seguintes, eu não estava me propondo a realizar a curadoria dos trabalhos que fossem chegando. Havia a ideia de uma espécie de curadoria coletiva, onde o público participasse e definisse os locais para as obras, e então criasse estratégias para a elaboração de uma unidade dentro da exposição. Queria deixar aparentes os elementos que constroem uma exposição, como a curadoria, a expografia e a montagem, permitindo que qualquer pessoa presente pudesse participar e interferir nesse processo.
Percebo ser essa a grande diferença entre meu projeto e os outros citados: em 36 hours We are all in this together e State of the art/Art of the state, a figura do curador é central. Nessas propostas, ele funciona como um mecanismo de legitimação, só que ao contrário: não cabe a ele definir quais obras ou artistas irão participar da exposição e tudo passa pelo seu aval; já não existe nenhum tipo de critério ou fator que influencie em sua escolha. O seu trabalho é fazer uma proposição, transformando a exposição em uma experiência viva.
Outra característica que percebo ser muito forte na proposta de Hopps, e que não é destacada nos outros projetos, é a maneira como o próprio curador trata do seu ofício. Quando Hopps afirma que gostaria de realizar uma exposição que não tivesse nenhum tipo de critério de seleção, ele está colocando em cheque seu próprio papel nesse sistema. E, ao afirmar que saudaria e cumprimentaria todos aqueles interessados em participar, ele está tratando de maneira irônica a relação estabelecida entre artistas e curadores – relação essa que continua em grande parte a mesma, desde os anos 70 até os dias de hoje.
A minha vontade inicial de criar um processo expositivo alternativo me fez perceber que a maioria dos artistas não busca apenas um lugar para expor, mas sim um espaço legitimador. A presença das ideias foi um vale-tudo que não buscava agregar valor a nenhuma obra de nenhum artista, mas sim refletir sobre os mecanismos que sustentam uma exposição de arte. Agora, ao que me parece, o buraco é muito mais embaixo e conseguimos perceber apenas a ponta do iceberg.
REFERÊNCIAS
[1]: OBRIST, Hans Ulrich. Uma Breve História da Curadoria. São Paulo: Bei Editora. 2010.
[2]: http://www.flickr.com/photos/anartist_flickr/3283128963/
[3]: http://areweallinthistogether.wordpress.com/
[4]:http://www.cameronartmuseum.com/uploads/State%20of%20the%20Art%20Artist%20Roster.pdf
[5]: OSORIO, Luiz Camillo. Razões da Crítica. Rio de Janeiro: Zahar Editora. 2005.