Um convite às galerias e aos colecionadores

Olhar para o que já existe é ter um ponto de partida para fazer a diferença.

O que fazer diante dos desafios e das demandas procedentes da escassez de investimentos públicos? Antes de definir como, é preciso saber aonde se quer chegar. Por isso, nada mais coerente do que abrir este convite apresentando a missão que norteia o Ateliê397: seguir como um espaço de pesquisa, formação e encontros de novos agentes (artistas, curadores, gestores, colecionadores, pesquisadores), levantando a bandeira da diversidade e do pluralismo. O Prêmio Vozes Agudas é a mais recente comprovação de que nossas escolhas e nossa militância fazem sentido e geram resultado.

Assumir a gestão de um espaço de artes num país fundado sobre corpos indígenas e negros me faz ter o imperativo ético de criar oportunidades para que seus descendentes o ocupem e se posicionem, contando suas histórias e compartilhando suas subjetividades, para, enfim, abalarem a tal “história oficial” – e poderem criar outras, sobretudo de resistência e afeto por meio das artes visuais.

Pelo Vozes, cartografamos artistas mulheres com marcadores sociais não privilegiados, em início de carreira ou sem larga adesão ao sistema. Foram mais de 830 inscrições, vindas de todo o território nacional, de artistas que buscam espaço para ecoar suas produções – que falam sobre a experiência de ser um corpo-alvo, uma vez que são residentes do país que mais mata negros, pobres e transexuais e que ocupa o quinto lugar no ranking mundial de feminicídio.

Ampliar o debate sobre os marcadores sociais por meio das artes visuais é um desafio que aceitamos enfrentar. Não à toa, mesmo sem crise (mas potencializada por ela), a cultura é a área mais prejudicada pela falta de investimentos públicos. Para mudar essa sociedade patriarcal e racista, o Ateliê397 tem proposto projetos como o já citado Prêmio Vozes Agudas e também o curso Clínica Geral, que se ocupa com a formação de artistas e curadores, com o aprofundamento da pesquisa de cada um, e cujas bolsas são destinadas a artistas negres e trans. Há também o LabGestão, com início em abril próximo, que tem como objetivo propor diálogos e atividades com gestores de espaços periféricos da cidade de São Paulo. Enfatizo que nossa preocupação é com a formação, a pesquisa e a criação de espaços de trocas.

De modo geral, os profissionais da cultura são desvalorizados e há muito tempo sofrem com a precarização no trabalho, mesmo em museus e centros relevantes no campo das artes. Uma análise da curadora Luciara Ribeiro sobre os primeiros resultados do “Mapeamento de curadores negros, negras e indígenas” revela:

“Mesmo com o aumento das contratações de curadores não brancos e com a abertura de exposições que contam com a participação desses profissionais, dos 76 curadores negros e dos 20 indígenas listados, 80% atuam de maneira independente/autônoma, sem vínculos efetivos com as instituições museais, artísticas e culturais”.

Luciara Ribeiro em “Curadorias em disputa” (leia aqui).

Há uma baixa taxa de empregabilidade formal dos curadores negros e indígenas. Sem contar a frequente expectativa de que a presença profissional deles seja exclusivamente para falar sobre sua condição racial. Exemplos de marketing de oportunismo também não faltam por aí.

Para não reforçar a imagem da gestão como um muro de lamentações, quero encaminhar uma reflexão de forma esperançosa, como um convite inspirador a colecionadores, galeristas e potenciais apoiadores financeiros que se irmanam à nossa missão. Abrir diálogos entre experiências diversas é fundamental. Como estabelecer fluxos entre iniciativas que se propõem a realizar ações de formação, que abrem oportunidades para novas experiências artísticas?

Como inspiração para mostrar que é possível, evoco a recente parceria da Marian Goodman Gallery com o Independent Curators International (ICI), um espaço independente como o Ateliê397, que, em janeiro de 2021, anunciou que homenageará o curador nigeriano Okwui Enwezor com o lançamento de um programa para criar oportunidades educacionais e de pesquisa para o desenvolvimento de curadores negros emergentes. Sobre essa iniciativa revolucionária, Marian Goodman avalia, em livre tradução:

“Espero de todo o coração que essa iniciativa possa ajudar a trazer uma mudança – e, claro, gostaria que Okwui ainda estivesse aqui para nos orientar. (…) É importante começar a abordar o desequilíbrio e a injustiça embutidos no sistema de galerias e museus. Temos orgulho de nossa parceria com o ICI para avançar em direção a essas metas de mudança”.

Marian Goodman em “Marian Goodman Gallery Initiative” (leia aqui).

(Só lembrando que o New Museum, em Nova York, abre em 17 de fevereiro a exposição Grief and Grievance: Art and Mourning in America, originalmente concebida por Okwui Enwezor, que faleceu em 2019.)

A iniciativa da parceria entre a galeria e o ICI, chamada Curatorial Intensive, prevê a realização de dois programas de desenvolvimento profissional para curadores emergentes. Cada um oferece a um grupo de 12 a 14 participantes as ferramentas críticas e logísticas necessárias para que eles desenvolvam e concretizem suas ideias, além de oferecer acesso a oportunidades de aprendizagem contínua, orientação e apoio por meio da rede internacional de curadores do ICI. (Ai, que inveja, também queremos! Quem topa?)

Como gestora de um espaço independente, que busca soluções financeiras criativas e efetivas, procuro apoios por um tempo maior, assim como o projeto de três anos do ICI. Parcerias como essa mostram um business intelligence, uma vez que contribuem com projetos que vão na direção da inclusão, da diversidade e, a meu ver, ao encontro do início de uma reparação histórica (sabemos que essa caminhada é longa) para que artistas, curadores e críticos negros possam contar, além do apoio financeiro, com ferramentas, acesso e orientações para realizar o que projetam, de forma autônoma.

É um salto de confiança, muito positivo, a forma com que o Ateliê397 e nossos parceiros têm se relacionado. No que diz respeito ao prêmio, nossas apoiadoras – e cito Alayde Alves como representante do grupo – são um exemplo de que isso já está acontecendo no 397. Assim como o olhar atento de Jaqueline Martins, que nos procurou querendo somar num momento difícil em que tivemos de reduzir drasticamente nosso espaço físico, também a Karla Osorio, da galeria com mesmo nome, em Brasília, nos apoiou e vai receber a exposição ainda este semestre. Antecipo que a exposição do Prêmio Vozes Agudas será aberta na Galeria Jaqueline Martins, com todas as precauções possíveis, no dia 6 de março. Também a Usina de Arte, em Água Preta (PE), assumiu a iniciativa de receber duas artistas ligadas ao prêmio para uma residência em abril. Tudo isso só nos deu mais vontade de continuar e ampliar os horizontes. Somos diferentes e queremos fazer a diferença.

Olhar para o que já existe, destacando iniciativas como a parceria da Marian Goodman Gallery com o ICI, nos mostra que isso também pode acontecer aqui.

Vamos juntos?

Tania Rivitti

Gestora do Ateliê397