Podcast Vozes Agudas: #20 Mariela Scafati – Apoio

Intro

Vozes Agudas (VA): Bem-vindas e bem-vindos todos ao Podcast de Vozes Agudas. A nossa convidada de hoje é a Mariela Scafati, que faz parte do coletivo Serigrafistas Queer, que é um não grupo que nasceu em 2017…

– como surge o coletivo…

Mariela Scafati (MS): Obrigada pelo convite. Acho uma boa oportunidade de fazer intercâmbio com o Brasil e poder compartilhar experiências mútuas. Bom, como começou Serigrafistas Queer? Na verdade, não houve intenção de começar, começou como um jogo, começou como parte de uma oficina que eu estava dando em uma galeria de arte que se chamava Beleza e Felicidade, no bairro de Villa Crespo, em Buenos Aires, e foi uma proposta de uma ativista LGBT, que me propôs fazer uma oficina gratuita, porque eram as datas próximas a uma marcha LGBT. Ela falou que faltava poesia na marcha, e que ela já tinha uma frase para colocar em uma camiseta e queriam fazê-lo.
Então, fizemos uma chamada de Beleza e Felicidade que foi bem ambiciosa. Fizemos um anúncio que dizia: “Primeiro encontro de serigrafistas gays”. Como esses encontros que são feitos em nível nacional, como se fosse o primeiro encontro de algo como se fosse um festival.
Bom, não veio ninguém, nem mesmo a ativista amiga que propôs o encontro gratuito.

Depois, vivemos um momento bem crítico em Buenos Aires. O espaço havia sido fechado, muito triste. Então, quando nos perguntavam coisas, a gente falava que estava tudo bem, para não nos afundarmos na depressão. Então, a gente se perguntou como tinha sido o Primeiro Encontro de Serigrafistas Gays e dissemos: foi um sucesso!
E, graças a esse sucesso, graças à ideia com que tivemos êxito – porque chamava muita atenção o nome da chamada –, nos convidaram em 2008 para participar de um festival de arte queer em uma escola secundária, no Nacional de Buenos Aires.
E lá a gente deparou com a palavra queer, que era uma palavra que já existia fazia uns dez anos, mas para nós, nesse momento, era nova – embora já existissem cumbias queers, que eram como amigas mas nunca a gente tinha se perguntado muito sobre esse jeito de se nomear. E, quando nos explicaram, a gente percebeu mais ou menos que nós, pelas coisas que fazíamos, nos identificávamos com essa palavra estranha.
Depois, nos emprestaram um espaço na Praça de Maio, depois no Festival de Arte Queer,  e então começamos a nos chamar de “encontro”; não nos chamamos “grupo”, por isso agora nós nos definimos como um “não grupo”.
A gente ficou com uma ideia, eu fiquei com uma ideia, muito frustrante, do que tinha acontecido com os coletivos no começo de 2000. Muitos desses coletivos nasceram em um contexto de revolta e em um contexto de crise, no qual foram aparecendo muito coletivos, e todos eles tinham deixado de estar ativos por muitas razões. E muitas tinham a ver com a lógica mesma do coletivo, por algo sobre a estrutura do que fazemos ao estar em um grupo, como algumas manias ou alguns erros que vamos repetimos.
Então, eu falei: “Não quero mais fazer parte de um grupo, mas quero seguir fazendo parte de ações coletivas”. Que contradição! Então, houve a possibilidade de pensar isso, de um não grupo, de gerar coletividade, comunidade, mas não ficar com a âncora de ter um grupo fechado. Mas isso foi para falar sobre como surgiu o grupo; começou assim, e depois continuou acontecendo um monte de coisas nesses 13 anos.

Acho que isso tem a ver também com minha relação com outras experiências coletivas. Uma que nominei foi de um coletivo criado em 2002, que é a Oficina Popular de Serigrafia, que tem muito a ver com o que seria o Serigrafistas Queer, pelo modo de ação de fazer uma montagem de uma oficina de serigrafia no espaço público.
Mas, pelo fato de ser um outro momento histórico, tudo foi mudando. Os movimentos sociais passaram a ter suas próprias oficinas de serigrafia, mas, naquele momento, essa oficina de serigrafia popular era a única que estava no meio das manifestações imprimindo camisetas com símbolos do próprio coletivo.
Em Serigrafistas Queer, os símbolos e as frases foram sendo concebido por cada pessoa que se aproximava a cada ano, de uma maneira móvel. Isso fez que tivessem aparecido diferentes tipografias e textos. Bom, essa foi uma experiência muito forte, na qual eu aprendi muito, e criou um compromisso muito forte, o sentido político de estar na rua, trabalhando na rua, fazendo uma articulação com distintas organizações políticas. E acompanhando assim também o Movimento Piqueteiro, o movimento pelas seis horas laborais, também demandas de direitos humanos, acompanhando denúncias públicas a genocidas.
Elas podem ser parecidas (as oficinas), mas os contextos são diferentes; são outros corpos, e também as frases são ressignificadas em Serigrasfitas Queer, pelo fato de os corpos levarem essas frases. E depois têm outros, mas a gente pode falar mais tarde, aguardo que vocês me falem, já que é um emaranhado!

(VA): Pensamos em como foi o encontro com a categoria queer. Como vocês se entendem como grupo que se identifica com essa categoria e como ressignificam essa categoria a partir da América Latina, sendo que é um termo que vem dos Estados Unidos, um termo acadêmico? E como, nas atuais circunstâncias, se transforma em um estilo de vida?

(MS): Fomos encontrando (o significado) dessa palavra, queer, como era entendido de uma maneira, e nos perguntávamos se nos enquadrávamos no que era queer. Intuímos que éramos parte dessa categoria queer, como éramos parte de algo queer, porém uma versão do sul, latino-americana. Essa palavra permitiu pensar outras ideias e aprofundar essa ideia. A princípio foi simples. Quando nos explicaram, pensamos: “Somos isso!”, um pouco loucas, gostamos de festa, de encontros com todos, queremos muita participação sem perguntar quem éramos. Ou como nós acompanhávamos, sendo uma comunidade estranha. Eu me chamo louca, não sei que palavra usar, convivíamos com muitas pessoas que se entendiam muito bem. Encontramos nesses espaços autogestionados nosso lugar. Depois, passamos a usar “cuir”, mas essa grafia não nos importou, entendemos que “queer” é mais que identitário, é o modo de fazer as coisas. Pensar como coletivo, ou como não coletivo, isso tem a ver com a ideia Queer. Poder pensar a política, a coletividade, a comunidade, com uma ideia queer em tudo isso.

Essa ideia inicial intuitiva de não querer repetir erros de coletivos, em um contexto de LGBTQIA +, isso nos facilitou, criamos um contexto em que as pessoas que se aproximaram das Serigrafistas Queer e que faziam parte das manifestações estavam pensando nas instituições de outra maneira – digo de maneira exagerada, mas estavam se perguntando sobre que vidas estavam vivendo, estavam se perguntando sobre o matrimônio, como ter um parceiro, se relacionar sexual e afetivamente. Essas perguntas se transferiram para o  momento de armar algo coletivo. Então, o queer também está na técnica. Não sei como é no Brasil, mas penso que isso é muito comum: a impressão, tinha que ser algo estabelecido, era preciso ser um gravador para realizar algo perfeito, pensando na serigrafia, na gravura, seria preciso ser um gravador. Nós não queremos esse caminho, isso não nos importa, usamos a técnica, somos serigrafistas, mas, sendo queer, podemos fazer o perfeito mas também qualquer outra técnica, fazemos o que desejamos fazer, qualquer outra coisa, podemos simplesmente nos reunir, interpelar o próprio mundo das artes, criando um lugar de pertencimento muito forte. Mais adiante, durante o governo neoliberal de Mauricio Macri, quando a situação política social se agravou, passamos a atuar muito mais, fora de um contexto LGBT. Atuamos fortalecendo alianças maiores, começamos a trabalhar com todas as organizações, participando de demandas maiores que apenas LGBTQIA+ (movimento de mulheres indígenas, pessoas em situação de rua, pessoas privadas da sua liberdade). Isso também nos foi possibilitado pela palavra queer; ela permite ampliar os laços com outros grupos: mulheres cis, gays, lésbicas.

(VA): Quanto a quem compõe o coletivo…

(MS) Sim!

No momento participam artistas ou não artistas. Quem participa varia, nunca foi contado quantas participam. Alguns não se consideram artistas, embora pensamos que sejam, não chegamos a perguntar isso. Acreditamos que a arte é uma aliada, isso é o que acreditamos, que a arte é uma aliada para criar esse pensamento e conexões, e graças à arte temos sobrevivido. Não sei se era a pergunta que estava fazendo?

(VA): Como se organizam dentro das dificuldades que você aponta e que também conhecemos?

(MS): Os modos de reunião variaram muito. No começo de 2008, a partir de 2010, por aí, fazíamos encontros prévios à saída da manifestação. Chamávamos encontro, era aberto e o coletivos Serigrafistas queer participava, e mais qualquer pessoa que quisesse se somar. Nesses encontros, trabalhávamos a partir do que tínhamos. Por exemplo, tínhamos quatro telas para serigrafia, feitas artesanalmente, era um número limitado, e assim nos organizamos com o que tínhamos. Economicamente era assim. Tínhamos os suportes e imprimia-se nas próprias camisetas das pessoas, e pronto, íamos para manifestação. Não se comprava nada. Apenas papéis, para imprimir entre uma camiseta e outra, e depois esses papéis eram entregues, distribuídos, tudo bem simples. Era preciso pouco dinheiro. Tudo muito simples. Nunca precisamos pedir dinheiro, subsídios, trabalhamos sempre de maneira autônoma, vinculado com querer viver bem, fugindo do burocrático, fazendo o que se gosta e o que gostamos, nada burocrático. Diferente do movimento Nem Uma a Menos, de que eu também participava, que é muito diferente na sua estrutura, em que se têm assembleias semanais, ou a cada quinze dias, e acompanham uma agenda (demandas). Porém, como seguir uma agenda em um país de crise? As demandas podem ser a cada duas horas, é impossível! Nesse momento de crise total, como foi durante o macrismo, bem,  imagino que tenha sido como no Brasil, agora com o governo Bolsonaro, não sei. Na Argentina, havia manifestações de todo tipo, para proteger lugares (como escolas), quando um deputado era agredido, eram muitas as razões, então dizíamos: “Vamos com calma”, respondendo quando podíamos. É preciso conectar-se sempre com o prazer nesse momento de desespero, para nos deixar resistir, porque senão nos sobra o próprio corpo, porque estávamos sempre com uma sensação de dívida, uma dívida permanente com algo que não era possível fazer. Então, como nos convidaram para imprimir como serigrafistas, notamos que não era importante imprimir como serigrafistas, fazendo esse papel, mas o importante é que alguém esteja imprimindo, porque alguém precisa, é necessário! Então, montamos um arquivo de serigrafia, uma biblioteca de serigrafia. Se um coletivo quer uma palavra de ordem nossa, um símbolo, o emprestamos. Explicamos como usar, damos as ferramentas, e eles imprimem. Qualquer pessoa aprende a usar instrumentos de serigrafia, a pessoa só precisa entregar dez fotos e, assim, se forma uma biblioteca de serigrafia. Depois, outra estratégia foi fazer oficinas para coletivos, pessoas, grupos, alguns artistas, distintas pessoas que queriam aprender serigrafia – como foi a experiência do Masp, pessoas individuais, coletivos, alguns artistas, mas o que queriam era aprender a fazer a serigrafia.

(VA): Fale um pouco sobre a participação na Bienal de Berlim.

(MS): Foi como um sonho, algo assim. No começo, foi como preparar um trabalho para uma bienal, como intuo o que é trabalhar para uma bienal, com ritmo, com lógica, mas depois a pandemia começou e desestruturou absolutamente tudo como eu vinha trabalhando, toda a ordem, alterou todo meu trabalho. Então pensei que o que havia pensado no começo, que logo lhes conto, não tinha mais sentido de ser feito, já que estávamos em outro momento, outro mundo.

Na Argentina, nesse período, havia manifestações antiquarentena, e eram compostas de pessoas fascistas, reacionárias. Isso alterou bastante, eu pensava antes em uma instalação chamada Mobilização, que previa uma coluna, um coletivo que se encontra em uma esquina, instantes antes de se manifestar, antes de encontrar outros grupos. Eram corpos em bastidores de pintura, tamanho real. Então pensei em mostrar uma manifestação latino-americana que mostrava pessoas em tamanho real; cada um é um amigo, esses são seus corpos, mas agora nenhum deles está nas ruas, manifestando. Por isso, decidi que estavam em outra ação, que estavam deitados, em um protesto, todos os amigos, incluindo eu mesma, estavam em uma manifestação de não ação como ação política, de parar. Foi um grande desafio, fiquei muito feliz, mas também foi muito tenso, porque os curadores tinham medo que parecessem corpos mortos. Mas pensei, e isto me interessava muito: por que tudo o que está deitado no chão está morto? E não apenas descansando, é preciso parar, certas coisas já não funcionam! Falando com os curadores, eu dizia: “Não sentem que as coisas já não funcionam como antes nesse mundo?”. Eles diziam: “Sim, sim, há algo que não funciona mais”. Assim, encontramos pontos de acordo, e foi uma reaprendizagem. Não viajei (para Berlim), uma amiga fez a montagem, fiz uma Bienal a distância. Foi uma boa experiência.

(VA): Sobre o trabalho com lambe, em Nova York…

(MS): Ah, sim, não viajei para NY. Bem, fiz uma parte da obra em 2011, eram frases relacionadas a diálogos com um amigo que estava muito impressionado com a experiência do 15-M, um movimento de protesto na Espanha. Começamos a conversar sobre nosso vínculo amoroso, nossa amizade, sobre histórias cotidianas, e também dividindo estratégias que sempre houve de contágio entre Espanha e Argentina, estratégias de comandar resistência criativas, e as praças em Madri, em Barcelona, tiveram incríveis assembleias. Então começamos a conversar sobre que coisas surgiram, que coisas desapareceram. Que manifestações ocorreram no final dos anos 90? E então pensamos a ideia do corpo como barricada fluida, no meio da conversa pensamos em palavras em cartazes. Como se tivéssemos um grande chat de conversa em que se elegem palavras que, depois, combinadas, ganham outro sentido. Depois de 2011, algo ainda ressoava. Depois de dez anos, pensamos em fazer uma versão 2021, por que não? Bom, fui mãe, isso (esse processo) se interrompeu, porque meu parto se adiantou, fui para o hospital. Fiz os cartazes com a barriga, poucos dias depois que cheguei do hospital continuei pintando, para poder concluir a obra. Depois, a data se postergou um pouco e, depois, eu a inaugurei. Foi bem estranho também, eu falava em deitar, em se deter como forma de manifestação, e passei por esse processo grávida deitada, passei todo o ano passado deitada. Todos os meus companheiros artistas que me encontraram, desde aquele tempo até agora, me descobriram com uma barriga enorme, ou seja, muitas coisas mudaram em tantos meses.

(VA): Sobre a frase “Somos otras e somos las mismas”, sobre a transformação, sobre a maternidade na sua vida.

(MS): Sim! Acredito que essa frase ressoa de muitas maneiras, depende do ponto de vista que tomamos. Adoro que você tenha a visto do ponto de vista da maternidade! Quem disse essa frase foi uma mãe, grande amiga, Marta Dilon, uma pessoa feminista, uma grande companheira, integrante do coletivo Nem Uma a Menos. Foi algo compartilhado em redes sociais, tinha a ver com algo que eu dizia, não era nostalgia, mas me parecia que vivíamos outro momento. Era uma data importante, um 8M, 8 de março, um 3J (3 de junho), era uma data importante, e então eu falava que não sentia nostalgia de todos esses anos, não tinha saudade de estar na rua, sentia que tinha uma nova potência, mas mais invisível. Nessa dificuldade que todos estamos tendo como coletivos, na comunicação, nos tempos, nossas vidas estão mais precarizadas, com menos dinheiro, e ainda insistimos em organizar os coletivos. Isso acontece com todos, e ainda sabemos que acontecem coisas que têm uma forma totalmente nova. Assim surgiu essa frase, foi um comentário de Instagram feito por Marta, “Somos otras y somos las mismas”. Como sempre, faço coisas que não sei o porquê, mas sinto que tenho que fazê-las; assim, depois vou unindo peças e entendendo, depois as coisas ganham sentidos, ou novos sentidos.

(VA): Sobre a presença do coletivo Serigrafistas Queer na Cidade do México com outros coletivos, em uma ação sobre banalização da violência e os casos de sequestro do metrô. Fale sobre ações em espaço públicos e dinâmicas das manifestações com outros coletivos.

(MS): Esse exemplo pontual, do que aconteceu na Praça das Revoluções, no México, nasceu de um convite para o Serigrafistas Queer, um convite para fazer uma oficina para outros coletivos, replicar o que foi feito no Masp, fazer uma chamada para outros coletivos, também em um espaço de arte, no Soma, um lugar de residência, uma escola de arte e pesquisa, no México. Fizemos a partir daí a chamada para os coletivos. Primeiro fizemos uma apresentação do trabalho, fizemos um estudo do uso das frases, dos textos, de como uma mesma frase tem diferentes leituras, sobre o uso do humor, sobre as frases que inquietam, de como usar um tipo de desenho e uma tipografia já particular ao feminismo. Assim, na participação entre coletivos, dividimos as diferentes problemáticas desse momento. Uma frase que se criou tinha a ver com os sequestradores no metrô, algo que acontecia diante de todos: os sequestradores se faziam de companheiro da vítima, abraçavam-na forte e diziam: “Não, meu amor”, e assim as levavam. Dessa forma, as pessoas não se envolviam, por parecer um problema de casal, e assim se problematizava a postura de não interferir no que se passa na relação (de um casal). Acontecia algo muito perverso, que resultava em sequestros em vias públicas. Uma frase que apareceu foi “Não me calo, meu amor”,  porque o agressor dizia “Calma, meu amor” e assim a detia e levava (a vítima).

Havia um coletivo com um fanzine chamado Mari Carmen, em que a frase foi “A mola de toda senhora é politica”.

Depois, fizemos uma solicitação para que essas frases pudessem ser usadas em nossos arquivos, para podermos usá-las em outras instâncias, e também nos interessava falar com elas, com as senhoras, poder falar de nossa velhice.

O formato oficina possibilitou trabalhar vários diálogos e criar essas palavras de ordem, essas frases. Cada coletivo trabalhou sua própria frase, e aí, assim, entra a questão da economia. Como era um contexto de arte, como no caso do Masp, que tem recursos, compramos materiais que foram encaminhados para os coletivos, algo que não se pode fazer na Argentina, como 15 telas para 15 coletivos; e, nesse caso, foi possível fazer muitas telas para várias coletivos e possibilitar que esses coletivos as levassem para seus territórios.

(VA): Um pouco sobre o trânsito; trabalho na rua; instituição; a experiência do Masp.

(MS): Por um lado, me dei conta de que, uau!, passaram-se 11 anos e nenhum museu nos convidou para nada. E, por outro lado, o que nos interessa é fazer coisas na rua. Isso me surpreendeu, mas por um lado esses convites são importantes, o convite para o Masp acho importante, mas aí penso: o que aconteceu nas ruas? Quando te convidam é porque alguma coisa já deixou de acontecer na rua, a energia nelas já baixou. Ainda bem, a experiência (realizada no Masp) tinha a ver mesmo com a gente. Entendeu-se como as coisas tinham que ser, o museu tinha vontade de gerar coisas mais vivas, não apenas as obras, as serigrafias. Bem, fomos todas, muitas pessoas (do coletivo) para participar dessas oficinas, oito ou 11 pessoas, e a oficina aconteceu no vão do Masp, de onde saem as manifestações, então fazia sentido para a gente. Isso foi muito importante para nós, era o lugar em que deveríamos estar, não estávamos literalmente dentro do museu.  

Depois, nossas serigrafistas fizeram um trabalho de tradução muito difícil, porque aqui dizemos “torta” para lésbica; de onde vem essa palavra, como entender? O que “torta” tem a ver com “sapatão”, por exemplo? Dizer “torta” em português não quer dizer sapatão. É importante pensar na história dessas frases, de quem as criou. Então, sendo em um museu, esse tipo de registro que não tínhamos – e uma instituição pode fazer esse registro do que acontece nas ruas –, tivemos essa oportunidade muito boa (de fazer essa pesquisa), foi um trabalho fora e dentro do museu. E agora essas serigrafias formam parte do acervo do Masp, é a primeira vez que um museu tem esses registros, e isso é importante, que um museu tenha esses registros, por muitas razões.

(VA): Sobre o cromoativismo…

(MS): É um grupo formado por cinco artistas e amigas, que pensaram em fazer uso das cores para debater ideias, pensar política, pois as cores estão dentro dos debates (pertinentes ao coletivo). Por meio delas pode-se colocar pessoas em categorias. Para nós as cores estão conectadas à liberdade e talvez sejam usadas para limitarmos, ou controlarmos. Por isso começamos a nos reunir, para pensar em renomear as cores, ir fora da lógica que aprendemos sobre cores, para pensar sobre violência de gênero, justiça, igreja, sobre meio ambiente, aborto, também acompanhando a luta das Mães da Praça de Maio, que fazem uso do branco,por exemplo – o que é problemático; alguns dos trabalhos, fora de contexto, podem ser problemáticos e não entendidos. Um lenço branco pode ser racista. É preciso pensar de que lugar, de que símbolos se fala. Muitas coisas para falar! Bom, é um coletivo contra Pantone, uma corporação que coloca um código na cor; empresas compram uma cor, mesmo artistas compram cores, empresas compram cores, e aí não se pode mais usá-las. Isso é ridículo. Estamos contra isso, e a Pantone agora está fazendo cores como a nossa, pela lógica só lhes falta poesia. Inventaram no ano passado “vermelho menstruação”. Temos um texto em que lhes respondemos. Na verdade, é duro ser sintética (sobre essa pergunta), porque tenho muitas coisas para dividir em relação a isso, a maioria do cromoativismo participa, com o Serigrafistas Queer, de encontros, residências. Eu gosto de grupos que geram pensamento depois da ação, e não o inverso. Assim, não há hierarquia entre o pensar e o agir.

Isso que acontece com vocês acontece conosco: dificuldade de nos encontrar.

Agora tentamos nos encontrar a cada 15 dias, para realizar outros projetos, fora da serigrafia, estamos pensando em outras coisas. Durante a pandemia, não podíamos nos encontrar, nos reuníamos com quem podia, em um processo mais invisível. Nós nos sentimos bem fazendo miniações, não importa se são ouvidas, se são vistas, se são publicadas nas redes, mas estamos fazendo.

(VA): Por que há grandes artistas mulheres? Como desviar sexo e gênero das imposições desse sistema hegemônico, ainda presente em 2021? Como, sendo um coletivo, se pode ocupar esses espaços agênero?

(MS): Podemos continuar nossa prática existindo. É possível que fujamos do tema, mas acredito que o que nos fez estar presente, nos fez sustentar tudo todo esse tempo, é que queríamos nos divertir. Isso está vinculado com o desejo e com o prazer. E acredito que há outros pontos, como é próprio do feminismo, como dividir o que fazemos. Nós nos sentimos estranhos quando se falam termos como “mulher”, e o que acontece é que não te convidam, e também esse (convite) não. A todo momento criamos espaços para nos mostrarmos e, assim, estarmos em lugar em que se pensem outros termos. Digo isso como coletivos; no nível individual, para mim, as mostras a que nos convidam… Como uma para que me chamaram, dizendo pintorAs, e eu disse: por que me chamaram? Aí entendi que queriam meu nome, não uma obra minha específica, era preciso meu nome junto a outros. Todas (as artistas) eram muito boas, era claramente uma mostra muito boa, naquela situação todas tinham uma galeria. E eram jovens, como a curadora, que também se incluía na mostra. E pensei: que coisa, há uma oportunidade de incluir tudo o que dizemos, todas as com galeria, as que não estão em galerias, as jovens, as mais velhas. Mas aí entendi que queriam meu nome, e eu era mulher, isso já suficiente. Isso me pareceu muito superficial, então o que me interessa é uma mostra de caráter feminista. Aprendi, com o tempo, que por isso não me marco como uma arte de mulheres, eu falo de outras coisas. Quando me anuncio como uma artista que apenas se opõe à arte de homens, sinto que deixo de fora muitas outras produções, de existências de gays, trans, não binárias. Comecei a encontrar um lugar, evito mostras. (Na) mostra de mulheres do Masp, deixamos claro que queríamos ampliar isso (a categoria mulheres). Nos demonstraram que seria assim, e por isso nos sentimos confortáveis de participar.

Por exemplo, uma mostra no PROA (Buenos Aires, Argentina), no começo do ano passado, (sobre) 8 de março, eu disse: “Não me chamem para isso, para esse tipo de homenagens, também não quero participar disso. Virou uma mostra de mulheres, isso não me agrada e fico atenta para evitar esse tipo de exposição”.

Mesmo assim, um prêmio para mulheres chamado 8M é muito importante, voltado para mulheres lésbicas, travestis e trans, na Argentina. É interessante que se estendia a quem se identificasse como mulher. Deixei de participar de prêmios há muito anos, mas nesse me apresentei, porque me pareceu um ato político; como o acervo da Argentina está montado sobre homens cis, esse prêmio se dirigia contra isso, já que as obras premiadas fazem parte do acervo do país. Depois, alguém corrigiu o nome do salão, era um salão para mulheres lésbicas, trans e não binários.

Conto minhas histórias, não quero me posicionar de um lugar teórico, falo de minhas experiências.

(VA): Nós sabemos, e mesmo quando te convidamos para participar deixamos claro, que nosso coletivo procura outros nomes. De repente, não nos identificamos somente com mulheres; é importante entender a lógica, talvez pensar em artistas não homens, algo fora dessa construção de gênero hegemônica. Como pensar tantas pessoas, com diferentes identificações?

(MS): Como pensar, entender a lógica, como nomear fora da lógica de construção de gênero? No momento, pensar em apenas dois gêneros até se faz; quando se faz uma mostra, se pensa em metade homens, metade mulheres. Não descarto a possibilidade de essa ser uma ferramenta, mas essas duas categorias não são suficientes, é preciso pensar em relações de hierarquia – que tipos de trabalhos podemos consolidar, quando em diálogo com curadores, que para mim é um trabalhador como eu, e ainda com os montadores, e com diretores? É algo da estrutura, de como se pensa o museu? Um artista não pode debater como queremos o museu? Ou como um não artista quer esse museu? Entendo o feminismo no pensamento, na construção de uma instituição de arte. Não tem a ver apenas com a existência de mulheres ou não, ou se há diretoras mulheres e não apenas homens.

(VA): Não estamos apenas disputando espaços de poder, e sim pensando outras dinâmicas de relação, outra organização que não precise dessa representação, e que esses espaços estão estruturados hierarquicamente.

(MS): Pensamos em outras dinâmicas de relação que não precisam dos mesmos espaços de poder. Precisamos pensar que o patriarcado está imbricado nas práticas e nos lugares em que trabalhamos. Isso me interessa. O interessante que se passou  em PROA  que participaram mulheres, e exigimos e nos organizamos, já que temos na pele a prática coletiva que vem do feminismo, de nos organizarmos muito rápido, e fomos coletivamente pedir que se aumentasse o tarifário das artes visuais, e o pagamento foi concedido. Conseguimos aumentar o pagamento a partir de um movimento coletivo. Isso foi algo muito bom. Teve um final muito bom. Para mim, que não queria participar, terminou em algo muito interessante!

(VA): Agradecimentos do nosso coletivo!

(MS): Obrigada pelo convite, adoro realizar trocas, tenho meu coração no Brasil, tenho muitos amigues no Brasil, amigas, amigos, gostaria de trazer a memória de Matheusa Passareli, no nosso arquivo. Temos o shablon de serigrafia feito em São Paulo que é “Corpo Traesnho”. Temos um lenço feito por Matheusa, que o fez para explicar a sua avó quem era ela. E adoramos essa frase; quando ela nos contou a história, sentimos que muito disso tinha a ver com nosso momento e conosco, e se ampliava a ideia de quais são esses corpos estranhos. Em momentos criticos, de repressão, que estamos passando, o corpo estranho pode ser um corpo trans, um corpo negro, sem casa, com cachos, e com tantas experiências que nós todas sabemos, um corpo grávido, infantil, velho, louco, marrom, colorido, maricas. Então, nós guardamos no coração esse trabalho, e foi serigrafado novamente quando se pedia “Lula Livre” na Praça de Maio. Uma das organizadoras era do Nem Uma a Menos, então, também na organização do festival, imprimimos ambos “Lula Livre” e “Corpo Traesnho”. Em um vídeo e uma tela grande, dividimos uma homenagem a Matheusa dizendo quem ela era e exibindo sua imagem.

Creio que, voltando ao começo, a constituição da identidade queer, agora com todos esses gestos, já é outra coisa, algo diferente do contexto acadêmico em que nasceu. Agora já é outra coisa.