Os Espaços Imantados – a edição brasileira e um possível “corpo coletivo”

A exposição “Espaço Imantado. Lygia Pape” recebida pela Pinacoteca do Estado foi organizada pelo Projeto Lygia Pape em conjunto com o Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofía. O Projeto Lygia Pape nasce em 22 de junho de 2004, no mesmo ano da morte da artista nascida em 1927, com a premissa de cultivar e cuidar de sua obra.  Segundo Paula Pape, presidente do Projeto, foi a própria artista que iniciou o processo de catalogação e conservação de suas obras, após ajudar a organizar a obra do amigo artista Hélio Oiticica, juntamente com a família e outros amigos. Cumprido o compromisso selado entre os dois, que determinava que quem falecesse primeiro teria de cuidar da obra do outro, Pape partiu para realização de seu próprio projeto sem deixar de produzir. Realizou diversas experimentações, como se pode ver em suas Ttéias recriadas de diversas formas e maneiras de 1979 até 2002 quando realizou umas das últimas montagens, no Museu de Serralves, nomeada Ttéia n˚ 1, da série B.

Segundo o texto do site da Pinacoteca do Estado de São Paulo sobre a exposição trata-se da “primeira exposição retrospectiva de Lygia Pape – um dos principais nomes da arte brasileira contemporânea junto com Hélio Oiticica e Lygia Clark, aos quais a artista tinha uma forte ligação”.  Mas, em minha opinião, pode até se tratar de uma retrospectiva, mas deixa de fora períodos significativos da produção da artista, privilegiando a sua produção mais conhecida da década de 1950 e 1960. Percebe-se facilmente a valorização da fase concreta (Grupo Frente) e da neoconcreta, mesmo que tenha sido contemplada também a parte de sua produção menos difundida, no que diz respeito principalmente ao seu trabalho com o cinema novo. Sabe-se porém que a exposição inicialmente realizada no Museu Arte Reina Sofía não chegou em São Paulo completa, por causa do espaço menor em que ocorre a mostra na Estação Pinacoteca, portanto podemos compreender que a edição mais limitada no Brasil se deu por um fator estrutural. O que me leva a acreditar que esse recorte ratifica o caráter construtivo potencializado com a obra da Lygia Pape.

Por mais que Pape tenha tido, juntamente a Oiticica e Lygia Clark, um certo reconhecimento nacional e internacional a difusão de sua obra foi menor que a dos outros dois. E é por isso que talvez a edição para a Estação Pinacoteca venha reiterar a produção construtivista da artista, apresentando assim sua importância e eficácia na construção da história da arte brasileira. Mas ainda me fazem falta suas realizações experimentais mais recentes, de 1980 a 2000, que influenciaram a arte contemporânea no país. Experimentações que acompanharam toda a trajetória da artista e  fizeram com que ela fosse denomina “plurissensorial” por Paulo Herkenhoff no texto, “Lygia Pape: A Arte da Passagem”, que ocupa o segundo lugar no catálogo da exposição aqui em voga, logo após a rápida apresentação dos curadores da mostra, Manuel J. Borja e Tereza Velázquez. E, também não esquecendo, produção essa que não deixa de ser colocada na larga expressão de Mario Pedrosa, “exercício experimental da liberdade”, que apesar de sua atual banalização  ainda faz jus aos Espaços Imantados de Pape.

Pois bem, voltando ao ponto de a exposição apresentar larga produção da fase concreta e neoconcreta da artista, podemos relacionar este contexto à urgência do desenvolvimento econômico em que hoje nosso país se encontra. Em meio a uma grande crise europeia parecemos nos manter “caminhando sem mancar”, e não sei até quando. É nesse contexto econômico e político atual que recordamos de quando a fase construtiva se deu fortemente no Brasil, ou seja, justamente durante a década de 1950, quando tínhamos um plano desenvolvimentista cerrado ligado à política econômica de Juscelino Kubistchek. Lembremos a expressão “50 anos em 5”. Nesse sentido, Frederico Moraes em “Vocação Construtiva (mas o caos permanece)” nos situa de maneira a perceber o caráter de mudança que o início do Construtivismo apresentava em 1917, no fervor da revolução na URSS: “o construtivismo russo, portanto, surge no momento em que se preparam profundas mudanças no plano econômico e social, quando se pretende dar o salto do subdesenvolvimento” e continua “Não estaria aí, também, um dos objetivos da arte construtiva entre nós? Nos manifestos madistas, concretistas, neoconcretistas ou invencionistas, não são feitas alusões às possíveis implicações políticas desses movimentos, mas esta ausência não nos impede de localizar em suas propostas uma presença política o desejo utópico de renovar e transformar a sociedade”.

Desse modo – sem recordar da primeira intenção do construtivismo, anteriormente comentada – me perguntei: por que não foram contemplados na exposição trabalhos como Língua Apunhalada (1968) e Jogo de Tênis (2001) juntamente com o já exposto Eat Me (1973)? Ou melhor, por que  não serem retomadas as Caixa das Formigas e Baratas (ambas de 1967) para compor uma melhor visualização do olhar crítico e experimental de Pape, ou para compor melhor o registro de performances e experimentações em vídeo da época? Depois de refletir e de ter conseguido retomar alguns aspectos da história da arte e de nosso contexto atual, consegui ao menos criar uma hipótese do porquê dessa escolha construtiva. A resposta talvez esteja ligada à ideia de difundir a fase construtiva da artista, primeiro pois a curadoria foi pensada por espanhóis, ou seja, corresponde à visão mais difundida da arte brasileira no exterior. Segundo porque seria interessante divulgar a produção da artista em que ela mais se debruçou – isso no sentido das múltiplas experimentações feitas por ela no grupo Frente e no neoconcretismo. E terceiro pois associar a vontade econômica atual de mudança e salto ao desenvolvimento no país com a fase da utopia construtivista faz-se coerente com intenções políticas.

Passando por uma questão primeira, estrutural ou talvez intencional, que implicou em escolhas, posso seguir nesse momento em direção ao próprio nome da exposição. Espaço Imantado é o trabalho de Lygia Pape de 1968 que representa, a meu ver, melhor o que a artista costumou pensar/trabalhar desde o início de sua produção em meados dos anos 1950. Desde as pinturas de 1953, da série de xilogravuras chamadas Tecelares de início em 1953 no concretismo até 1959 passando a fase neoconcreta, também de seus desenhos de 1955 a aproximadamente 1960, até os Livro Poema  de  1960, a chegar em Divisor de 1968. Todos esses trabalhos compartilham uma intenção da artista que fica clara quando ela apresenta tanto o texto como o trabalho que dá nome a exposição.

O texto não datado de nome “Espaços Imantados” de Lygia Pape corresponde a significação do termo a partir de três exemplos. O primeiro, ao espaço urbano dentre ruas e esquinas, em que ela se sensibiliza explicando que “a partir de minhas andanças de carro pela cidade (…) fui percebendo um tipo novo de relação com o espaço urbano, assim como fosse uma espécie de aranha tecendo o espaço (…) que é como se passássemos a ter uma visão aérea da cidade e ela fosse uma imensa teia…”. Nesse primeiro é inevitável não corresponder tal sensibilidade à imagem idealizada dos Tecelares e das, mais literalmente, futuras Ttéias. Em segundo lugar, Pape exemplifica a figura movimentar dos camelôs que aparecem em um espaço com suas parafernálias e tem um caráter de aglomerar as pessoas ao seu entorno, “numa espécie de imantação”, segundo ela.  Me vem rapidamente a imagem do Divisor, caracterizado como uma espécie de “mapeamento” do corpo coletivo, participante e finalizador da obra de arte. E em terceiro momento, o espaço imantado que ela denomina como “agressivo, terrível, furioso, desesperador e belo”, exemplificado no texto pela Baixada Fluminense, onde ela considera que ocorre “a tragédia do homem anônimo, perdido e só”. Com relação a esse último espaço eu não teria nenhuma obra a me referir, a não ser pela exuberância de outros trabalhos futuros, Manto Tupinambá de 1996 e Bus Stop de 1999. E se pararmos para pensar, Imantado só parece dizer o contrário de “Mantado”, de modo que Imantado é aludido pela própria Lygia como uma espécie de Imã, que conglomera as pessoas, como os camelôs, mas ao mesmo tempo o Imã de Imantado as aquece quando unidas como um certo manto que as acolhe. E por isso Manto Tupinambá pode corresponder ao manto vermelho que cobre parte da cidade, assim como Bus Stop pode ser “a tragédia do homem anônimo, perdido e só”.

Dessa maneira é passível entender quando Herkenhoff utiliza-se da expressão “plurissensorialidade” ao mesmo tempo que podemos inserir a ideia de “corpo coletivo”, mas isso porém só me parece possível se compreendermos também a “passagem” que sugeriu Taisa Palhares durante a palestra com Cauê Alves na última quinta-feira (29/03/12) na Pinacoteca do Estado sobre a própria exposição. Taisa comentou que talvez a obra de Pape não tivesse como mote a vontade de dissolução entre arte e vida, como se pode apreender sobre a obra de Hélio Oiticica e Lygia Clark, mas que a vontade desse corpo e da participação dele se dá justamente na passagem de ida e volta entre a arte e a vida, como se acontecesse no entendimento entre as duas coisas. E dessa maneira, a “plurissensorialidade” não se dê exclusivamente perante as múltiplas ideias de Pape e suas múltiplas facetas de sensibilidade – como podemos perceber no próprio texto Espaço Imantado -, mas também na sensibilidade dessa passagem que  Taisa generosamente sugeriu-nos em tom de dúvida.