Mesmo estando preparados: trabalho em grupo

por Caio Bonifácio

A sede do Ateliê397 é num galpão pós-industrial no bairro da Barra Funda. Entre os meses de março e abril de 2023, o chão desse espaço recebeu um desenho de vários retângulos numerados: uma amarelinha. O desenho inscreve essa brincadeira no concreto manchado de roxo e rosa do galpão, marcas do cotidiano da confecção ou da gráfica que ocuparam o prédio antes. Na nova configuração do lugar, um espaço de arte, esse desenho foi uma obra e parte da exposição Mesmo Estando Separados

Esse convite para brincar foi uma proposta do Núcleo Coluna, coletivo composto pelas artistas Lígia Tortella e Júlia Bernardet. Amarelinha, como foi chamada, desloca o espaço de arte com um jogo. Quem caminha pela exposição se vê frente à decisão de jogar ou não uma pedra e pular as doze casas. Amarelinha reconhece a convenção de caminhar lentamente por uma exposição, detendo-se em cada obra, e propõe um outro ritmo, do salto, do jogo, de uma ação.

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De minha janela (1º de dezembro de 1976), vejo uma mãe segurando o filho pequeno pela mão e empurrando o carrinho vazio à sua frente. Ela ia imperturbavelmente em seu passo, o garoto era puxado, sacudido, obrigado a correr o tempo todo, como um animal ou uma vítima sadiana chicoteada. Ela vai em seu ritmo, sem saber que o ritmo do garoto é outro.

O trecho acima é da primeira parte do texto Como Viver Junto, escrito pelo filósofo francês Roland Barthes. Viver junto é uma experiência de unir os ritmos, fazer bater juntos os diferentes. A experiência da vida em conjunto exige um encontro constante, mesmo que em lugares diferentes, em tempos diferentes.

Em uma das várias reuniões de preparação para a exposição, veio da Bruna essa frase “Mesmo Estando Preparados”, meio brincadeira. Mesmo preparados, cada experiência é um novo desafio, com obstáculos de várias alturas. Pensei numa preparação comum: trabalhos escolares em grupo.

Na escola, nos anos de transição entre ciclos do ensino fundamental, somos frequentemente levados ao trabalho em grupo. Lembro de ir na casa de amigos, passar umas tardes com conversinha, comida de mãe, idas ao mercado, páginas do Orkut. Às vezes, mexer numa maquete de isopor, escrever numa folha de papel almaço, desenhar na cartolina. No meio disso tudo, discutir e negociar, animados ou silenciosos, as perspectivas sobre o trabalho executado. Mais cedo ou mais tarde, melhor ou pior, o trabalho chega ao fim.

Negociação é uma prática fundamental ao trabalho em grupo. Muitas vezes ela apareceu pra mim em pesadelo, como um fantasma na casa vazia. Negociar é dialogar tendo como horizonte um acordo, muito distante do desejado, mas comum. Como num trabalho em grupo, como em negociações bem arranjadas, o tempo é fundamental; e leva tempo. Com café ou cerveja, refrigerantes, pãozinho, conversas paralelas, suavizando a tensão de abrir mão para ouvir e considerar o outro. 

É um diálogo menos eficaz quando se insere entre outras reuniões e compete com outras convocações. O planejamento de Mesmo Estando Separados foi um “algo a mais” na vida dos curadores, alguns com trabalhos fixos, alguns vivendo fora de São Paulo; todos com outras demandas. O tempo foi a maior negociação: como objeto de troca, ele esteve sempre dentro da disputa, não fora, como seria desejado para um bom negócio. Negociar tempo, não negociar com tempo.

Vista da exposição Mesmo Estando Separados – Crédito: Renato Nonato e Márcio Vaz Gomes

Não ter o tempo como um amigo, tentar cercar o tempo. Eu lembro da escola e dos trabalhos em grupo, sempre feitos com pressa e o prazo batendo na bunda. Sem tempo, é pra ser feito a toque de caixa, na medida das condições e possibilidades. Então, uma distribuição desigual do trabalho: os ritmos não convivem. Então, a estafa e o desafeto. Negociações fracassadas fazem romper. A raiva e o rancor vêm como uma flecha.

Para a exposição, diferentemente dos trabalhos em grupo, o coletivo surgiu como um desejo nosso. Foi escolha nossa aceitar todos os inscritos na chamada aberta, foi o grupo quem decidiu trabalhar juntos. 

No curso Como Viver Junto, Barthes explorou as imagens literárias daquilo que denominou Viver-Junto: “fantasia de vida, de regime, de gênero de vida, diaita, dieta. Nem dual, nem plural (coletivo). Algo como uma solidão interrompida de modo regrado: o paradoxo, a contradição, a aporia de uma partilha das distâncias – a utopia de um socialismo das distâncias […].”

Uma fantasia na qual não há contradição entre querer viver só e querer viver junto. Essa situação é orientada pela idiorritmia: a convivência dos ritmos próprios. Para ele, ritmo não é o “movimento regular das ondas”, mas o “modelo de um elemento fluido, forma improvisada, modificável. Na doutrina, maneira particular, para os átomos, de fluir; configuração sem fixidez nem necessidade natural: uma fluência […].”

Ele fala sobre idiorritmia a partir da vida dos monges do monte Atos: eles vivem juntos, mas isolados. Uma vida dedicada, com uma dedicação compartilhada.O modelo fantástico do viver-junto não poderia ser a prática da curadoria coletiva. Esta não é uma fantasia e por isso carrega contradições. O índice do viver-junto é, então, a conversa. 
Quando surgiu a ideia de uma curadoria coletiva, fiquei animado e lembrei do tempo em que construí com meus amigos a revista Tonel (minha preparação) [Por dois anos, a revista Tonel habitou o site www.tonel.co, que hoje está inativo. A Tonel vive uma sobrevida na página do Instagram @revistatonel]. A comunicação visual era feita em conjunto, os editoriais eram escritos a dez, doze, dezesseis mãos. Em 2021, experimentamos também fazer uma chamada aberta: recebemos centenas de trabalhos e levamos meses para ao conjunto que foi publicado. Cada escolha era resultado de um diálogo intenso, mais ou menos acalorado, quase sempre feito por videochamada.

Vista da exposição Mesmo Estando Separados – Crédito: Renato Nonato e Márcio Vaz Gomes

Quando Barthes descreve a cena que viu por sua janela, da mãe levando o filho pela mão – transcrita neste texto -, ele exemplifica a heterorritmia e aponta a sutileza do poder. No sistema-família não se realiza o viver-junto, pois há uma lei e uma hierarquia que sustenta essa organização. O poder está na imposição de um ritmo (como movimento das ondas), que rejeita a singularidade (sua forma fluida). 

Uma construção horizontal parte, necessariamente, da proposta de dissolver uma hierarquia. No decorrer de seu curso sobre o viver-junto, Barthes dedica um trecho à própria ideia da aula: nela, o professor deve saber apenas um pouco mais que os alunos. O que autoriza Barthes a dar seus cursos é já ter feito aquilo sobre o que ele fala antes. De outra forma, não haveria o que trocar nessa situação. Dessa posição de autoridade, ele busca dissolver: é possível percorrer o poder, fazer uso e proveito dele, enquanto busca acabar com ele.

Na preparação da Mesmo Estando Separados, cada pessoa curadora foi responsável por um grupo de artistas. De certa forma, cada um tomou o partido de seus artistas. Passamos muito tempo debruçados sobre uma planta do galpão do Ateliê397, projetada na tela de vários computadores, tentando encaixar as representações dos trabalhos no espaço virtual. Nos dias de montagem, o grande desafio foi encontrar lugar real para trabalhos reais, que não se restringiam a ser aquilo que imaginamos.

Vivendo junto, cada trabalho tem seu ritmo, cada um se relaciona de certa maneira com o espaço, cada um tem uma exigência e se apresenta de forma diferente à percepção. Várias vezes, para poder viver junto, foi necessário separar, isolar, apresentar outra convivência. 

Percorrendo o diálogo entre curadores, no plano de fundo de cada reunião, estava uma série de conversas (reais ou imaginadas) com artistas e outras pessoas. As negociações articulavam demandas específicas, de agentes externos ao grupo de curadoria. Muitas decisões visavam a evitar uma conversa desagradável, como para avisar o artista que seu trabalho não aconteceria como previsto. 

Com a inauguração da exposição, esse processo não se encerrou. Ainda negociamos datas para ações artísticas, presenças em visitas guiadas, divulgação das atividades, parcerias para registros em vídeo e fotografia, muitas outras coisas. A exposição se revelou como um lugar de encontro, onde coisas aconteceram e precisavam ser decididas.