Cruzeiro do Sul 27.04.18
A ação da artista Flora Leite consiste em fazer o Cruzeiro do Sul de fogos de artifício no dia 27 de abril de 2018, 21h. A data foi escolhida em virtude dos relatos do Mestre João, cientista, médico, astrônomo e astrólogo presente na embarcação de Pedro Álvares Cabral que aportou no Brasil em abril de 1500, e que no dia 27 de abril identificou o Cruzeiro do Sul pela primeira vez.
Data: 27/04/2018
Hora: 21h
Localização: margens da Represa Guarapiranga
Avenida Atlântica, na altura do número 2860 – no gramado logo atrás do restaurante “Baião de Dois”, de frente a represa.
A estação mais próxima de trem é estação Socorro.
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Recomendações:
– roupas cobertas
– sapatos fechados
– repelente
Muitas coisas no Brasil levam o nome de Cruzeiro. Uma cidade no Acre. Um time de futebol. A moeda nacional. Estampada na bandeira brasileira, a constelação Cruzeiro do Sul – a menor que existe, mas a mais conhecida por aqui – é um dos grandes símbolos nacionais. Em parte porque marca nosso lugar no mundo: estamos dentro do que se convencionou chamar de hemisfério sul do planeta. Em parte porque, diferente de outros símbolos nacionais criados ao longo do tempo, o Cruzeiro do Sul parece não ser marcado por questões ideológicas e contextos políticos, remetendo a algo mais universal e atemporal. Mas a sua história está ligada à chegada dos portugueses ao Brasil, há 518 anos. Descrita pela primeira vez em 27 de abril de 1500, pelo mestre João, que integrava a comitiva de Cabral, o batizado do Cruzeiro do Sul coincide com a entrada do Brasil na História Universal (hoje melhor compreendida como História ocidental europeia…). Não que a constelação não estivesse ali antes, mas talvez os habitantes de outrora não tivessem o costume de ver cruz em tudo, como os tripulantes portugueses e espanhóis da esquadra de Cabral.
A obra de Flora de Leite, Cruzeiro do Sul 27.04.18, consiste em recriar a imagem da constelação usando fogos de artifício. A obra parte desse raciocínio simples – a imitação – tomando proveito da aparência luminosa dos fogos, semelhante às estrelas, e do fato de que eles são lançados sempre para o alto, apontando, portanto, para o céu, onde se localizam os astros. A beleza desse trabalho está, em alguma medida, na concisão do procedimento que, surpreendentemente, resulta numa profusão de sentidos. É difícil enumerá-los e descrevê-los, como se o tempo curto da explosão fosse insuficiente para esmiúça-los. Como se fosse preciso vê-lo de novo, em câmera lenta, numa outra frequência.
Curioso observarmos o uso que fazemos hoje dos fogos de artifício em datas comemorativas: as festas de São João, o Réveillon, as finais de campeonatos esportivos. Datas históricas, marcos do instante presente, celebrações que tentam dar densidade a um instante vivido (em contraposição àquele tempo que flui, que simplesmente escorre continuamente). Outros artefatos pirotécnicos, os sinalizadores navais, cuja imagem vagamente nos devolve à época dos ditos descobrimentos, permitem a comunicação de embarcações que se desviaram do rumo, que estão perdidas, que precisam de ajuda para voltar ao curso original. Novamente as coordenadas de tempo e espaço: o trabalho dos astrônomos que definem calendários, durações, ciclos e fornecem coordenadas espaciais.
O processo do trabalho que, grosso modo, consiste em decidir sobre a qualidade dos fogos (cor, alcance, tipo) e encontrar a posição correta para dar o efeito desejado, é oposta à inexorável movimentação das estrelas no céu. Há, por parte da artista, um intenso esforço de controle para alcançar um efeito próximo ao natural. Soma-se a isso o termo “artifício”, sempre associado aos fogos, e que impregna o trabalho. É como se o trabalho nos levasse a pensar nessa definição de arte que a aparta radicalmente da natureza. A arte como o Outro da natureza.
É também sob o signo do artifício que parecem surgir, no trabalho de Flora Leite, as noções de descobrimento e, por extensão, de país, de Brasil e, mais ao longe, de História. Acaso ou providência, escolha ou destino, o trabalho ocorre pontualmente no dia 27 de abril, às margens da Guara(i)piranga – aludindo também, em mais uma cintilação, a um outro episódio forjado da história nacional.
Thais Rivitti, abril de 2018