“Quem é você? O que você faz?”
Por Junia Cordeiro e Patrícia Barroso
Cena 1:
– Beltrano, este é o Fulano de Tal. – Muito prazer, Fulano. O que você faz?…Cena 2: Manhã de sol. Babás, mães-babás, crianças na praça. Areia, baldinho, escorregador, gira-gira. Criança corre, criança pula, criança constrói castelo de areia, criança briga por pazinha, criança brinca de casinha.
Cena 3: O sinal estridente ressoa no pátio. Fim do recreio. Algazarra – uma turma de alunos de treze anos adentra a sala de artes. A história na cabeça e os materiais sobre a mesa: uma proposta. Materializar o imaterial. O grupo constrói um Abapuru de argila.
Cena 4: Homem levanta-se às quatro da matina. Pincéis, marmita e uma camiseta velha na mochila. O trem do subúrbio superlotado carrega esperanças, obrigações, fardos, perdas e ganhos. Na casa de um bairro abastado da cidade, faz os acabamentos na pintura da sala de estar. Fim do dia – salário na carteira. Janta com a esposa e os filhos. O dinheiro para as compras no mercado de amanhã já está garantido.
Cena 5: Os joelhos doem ao sair da cama numa fria manhã. Aos poucos, a sensação de dor cede aos primeiros movimentos no cuidado da casa.O cheiro de café perfunde todos os cômodos. O jardim e a horta recebem seu carinho matinal e respondem com seu fruto habitual. Um bolo sai do forno e aguarda pacientemente, sob o paninho bordado à mão por ela, a visita dos netos.
Alimentar-se, realizar a higiene corporal, cuidar família, trabalhar, dedicar-se a momentos de lazer, administrar as finanças pessoais, estudar, fazer a manutenção da casa, participar de atividades religiosas, locomover-se para os locais onde precisa ir, prestar um serviço voluntário, fazer compras, participar de eventos sociais, dormir… A nossa vida gira em torno de atividades repletas de objetivos e significados – ocupações[1] – por meio das quais suprimos nossas necessidades físicas, psíquicas, sociais e espirituais. Estas atividades organizam-se em torno dos hábitos, rotinas e papéis que desempenhamos na sociedade.
Desde o nascimento, as atividades cotidianas são de fundamental importância para a aquisição de todas as habilidades que conduzem o ser humano à conquista de sua independência, autonomia, identidade pessoal e capacidade de adaptação que necessita diante das dificuldades e desafios que a vida lhe apresenta. Sem estas ocupações, falta ao ser humano a oportunidade para o desenvolvimento contínuo e para alcançar a devida inserção na comunidade em que vive. As ocupações são tão importantes quanto o alimento que o ser humano ingere e o ar que respira.
As atividades ou ocupações que propiciam todo este desenvolvimento humano e também constroem o mundo são denominadas práxis, conforme caracterizada por SOARES (1987):
“O homem, a partir de sua prática, se antecipa a ela, prevê, planeja sua ação e a modifica no contato direto de sua ação sobre a realidade material. Ao final deste processo prático-reflexivo-prático, o homem modifica seu próprio plano, incorporando os dados adquiridos na experiência prática. Ao final do processo, tanto a realidade material (o que é dado) pode ter sido transformada quanto as relações sociais, as concepções, ou ainda, o próprio homem……A práxis [grifo nosso], por ser o mecanismo de transformação do homem, ao se concretizar na produção material da existência, atinge sua máxima potência. A atividade produtiva humana também chamada trabalho, como forma original da práxis, por sua dinamicidade, foi o cerne do processo de hominização, ou seja, de criação da espécie humana.”
A importância da atividade humana integrada homem-ambiente é também reconhecida como saúde pela Organização Mundial de Saúde e pela Associação Americana de Terapeutas Ocupacionais (DUNN et al., 1994) que alocou a atividade propositada como um dos elementos necessários à vida saudável e funcional, juntamente com as estruturas e funções corporais, participação social, fatores pessoais e ambientais.
Mais recentemente várias entidades como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), dentre outras ligadas aos estudos das atividades humanas, vem adotando a Teoria e Metodologia do Uso do Tempo. Segundo esta teoria/metodologia o tempo de cada individuo é dedicado à uma gama de atividades categorizadas como se segue: cuidados pessoais; trabalho remunerado/emprego; atividades educacionais/ formativas; atividades domésticas; atividades de cuidar (crianças, idosos, doentes); aquisição de bens e serviços (compras, pagamentos); trabalho voluntário; atividades sociais, culturais, políticas, religiosas; e recreação e lazer.
Resta pontuar que as diferentes fases da vida trazem consigo maior ou menor demanda sobre cada um destes grupos de atividades. No entanto, independentemente da fase ou da idade, é importante buscar: equilíbrio entre esforço e descanso; motivação e auto-realização no envolvimento com as atividades; interação social; adaptações à forma de realizar as atividades diante de eventuais obstáculos; e autonomia e independência para fazer escolhas e tomar decisões sobre as atividades que realiza. Define-se um indivíduo com autonomia quando o mesmo é “capaz de autogerir sua vida e determinar livremente as regras de ação” (FERLAND, 2006).
Cena 6: Numa pracinha da cidade, uma criança compartilha a pazinha; numa sala de artes, um adolescente compreende a habilidade de suas mãos e a força de seu desejo; na mesa de jantar,num subúrbio do município, um pai de família respira aliviado; às onze horas, os netinhos adentram aquela cozinha repleta de cheiro de bolo e uma idosa sorri com um misto de alegria, orgulho e sensação de dever cumprido.
[1] Segundo Llorens (1984), a ocupação é uma atividade propositada (purposeful activity), que tem um propósito. Este tipo de atividade é capaz de influenciar o desenvolvimento humano e, ao mesmo tempo, influencia o meio à sua volta.
BIBLIOGRAFIA
1. DUNN, W., BROWN, C., & MCGUIGAN, A. The ecology of human performance: A framework for considering the effect of context. American Journal of Occupational Therapy, 48, 1994. p.595–607.
2. FERLAND, F. O Modelo lúdico. O brincar, a criança com deficiência e a Terapia Ocupacional. 3 ed. São Paulo Roca, 2006.
3. LAW, M., COOPER, B., STRONG, S., STEWART D., RIGBY, P., LETTS, L. Person–environment–occupation model: A transactive approach to occupational performance. Canadian Journal of Occupational Therapy, 63, 1996. p.9–23.
4. LLORENS, L. Changing balance: on environment individual. The American Journal of Occupational Therapy, v. 38, 1984, p. 29-34.
5. Sistema Integrado de Pesquisas Domiciliares – IBGE, www.ibge.gov.br/home/estatistica/…/sipd/texto_discussao_24. pesquisa realizada em 01/05/11.
6. SOARES. L. B. T.; Terapia Ocupacional: Lógica do capital ou do trabalho? Retrospectiva histórica da profissão no estado brasileiro de 19050 a 1980. Dissertação de mestrado UFSCAR, 1987, p. 19.