Arte como serviço, trabalho como arte

Por Isabella Rjeille

“All artists are alike. They dream of doing something that’s more social, more collaborative, and more real than art.”

Dan Graham

 

Há dois anos faço parte de um coletivo[1] e em uma de nossas propostas, emitimos carteirinhas de Licença Poética. Como todo órgão emissor de documentos, nos dispomos como uma verdadeira repartição pública: com guichês, formulários, crachás, hora marcada, burocracia, espera, estresse (tanto dos funcionários – nós mesmos – quanto do público-cliente), entre outros detalhes – para emitir um documento que, pode-se dizer, inútil.

Este “documento” possui foto, número de RG e CPF, ofício, informações básicas como nome, data de nascimento e nacionalidade, tudo isso em um invólucro plástico que sai quentinho da nossa máquina de plastificar – é um objeto que mobiliza um grande esforço da parte de 5 pessoas que se propõem a fazê-lo. E todo este esforço é dividido e contabilizado em um valor de 2 reais por carteirinha.

Em uma de suas recentes atuações, o Coletivo Repartição Pública participou de um evento[2] que, durante toda a tarde, licenciou uma grande parcela do público visitante, após estes passarem por um processo que consiste em preencher formulários, fotografar, imprimir, colar e recortar fotos, datilografar informações, plastificar a carteirinha e buscá-la pronta após ouvir seu nome sendo gritado por um dos funcionários. Ao final do nosso expediente escutamos reclamações de pessoas que estavam enfurecidas pela demora para receber seu documento, e até a devolução dos 2 reais pagos pelo serviço aconteceu. Este valor parecia ter aumentado de tal forma que o público se sentia na obrigação de permanecer ali, de chegar atrasado seja lá onde quer que fosse, tudo para receber sua Licença Poética. Neste momento, acreditamos estar, de fato, em uma Repartição Pública, com funcionários estressados, filas de pessoas reclamando, devolução de dinheiro, explicações demasiadas de que:  “existe uma fila, estamos respeitando uma ordem, por favor, você pode aguardar?, existem pessoas na sua frente, etc.” Neste momento, tanto o nome do coletivo quanto a nossa forma de trabalhar, fizeram sentido. O envolvimento do dinheiro e do público no processo fez do nosso “trabalho de arte” um serviço e, o objeto, um produto – e como todo serviço prestado, deve ser bom, eficiente e útil. A fúria com que as pessoas nos questionavam sobre nossa organização e reclamavam da demora nos fez perceber o valor agregado deste documento – que de fato, é inútil enquanto objeto, como parte das obras de arte[3] e de muitos documentos que adquirimos ao longo de nossa vida. Porém, o compromisso de entregarmos as carteirinhas aos interessados se tornou um vínculo de serviço que deveríamos prestar às pessoas, pois elas haviam pago por ele.

Uma vez que as propostas do Coletivo Repartição Pública adquiriram o caráter de serviços prestados – tanto a Licença Poética, quanto o Educativo Paralelo[4]–percebemos uma relação entre a motivação de nossas propostas e o trabalho de uma repartição pública, ou qualquer prestador de serviços. Dessa forma, procuro pensar as relações estabelecidas entre o trabalho de arte e o trabalho formalmente reconhecido na sociedade, suas aproximações e distanciamentos. Antes de refletirmos sobre a ideia de trabalho em arte, serviço e ocupação profissional, procuro definir brevemente os conceitos de trabalho e ocupação e depois compará-los e pensá-los sob aspecto de algumas obras.

A ideia de trabalho está ligada, em seus princípios, a exteriorização de uma subjetividade interna do produtor, que ganha forma no objeto produzido, fruto de seu empenho. Ao produzir um objeto, o autor se reconhece nele, pois participa de todos os processos para atingir sua forma final. Em um período em que poucos são os produtores, que de fato produzem algo engajados em todo o processo de produção – da concepção à sua forma final – temos o trabalho que aliena. A alienação se dá quando o produtor não se reconhece no que produziu – ou seja, a forma final de seu trabalho é fruto da exteriorização da subjetividade de outro autor, problematizando as questões ligadas a essa exteriorização do subjetivo e autorreconhecimento no objeto, essenciais ao homem.[5]

O conceito de trabalho se aproxima do conceito de ocupação, entendido aqui como uma ocupação profissional. A palavra “ocupação” possui diversos significados e um deles está diretamente relacionado ao trabalho, segundo o dicionário Aurélio : “ (…) 2. Ato de ocupar-se, de trabalhar em algo. 3. Atividade, serviço ou trabalho manual ou intelectual realizado por um período de tempo mais ou menos longo. 4. Ocupação (2 e 3), ofício ou função remunerada; trabalho, serviço (…)”. Portanto, a relação entre trabalho e ocupação está principalmente relacionada ao próprio indivíduo e seu tempo – trabalho é também o ato de ocupar-se. A vídeo artista alemã, Hyto Steryl, em seu texto “Art as Occupation: Claims for an Autonomy of Life”, publicado no site do e-flux em 2011, articula possíveis diferenças entre trabalho e ocupação: “An occupation is not hinged on any result; it has no necessary conclusion. As such, it knows no traditional alienation, nor any corresponding idea of subjectivity. An occupation doesn’t necessarily assume remuneration either, since the process is thought to contain its own gratification. It has no temporal framework except the passing of time itself. It is not centered on a producer/worker, but includes consumers, reproducers, even destroyers, time-wasters, and bystanders—in essence, anybody seeking distraction or engagement.[6] Dessa maneira, a artista conclui: “Perhaps most importantly: occupation is not a means to an end, as traditional labor is. Occupation is in many cases an end in itself.” Portanto, uma ocupação se difere do trabalho – entendido aqui em seu significado tradicional de emprego remunerado – em sua relação com o fim e com a recompensa: enquanto o trabalho está voltado para um fim e para uma remuneração como recompensa, a ocupação possui um fim em si mesma e a recompensa é o próprio ato de ocupar-se. Dessa forma, a ocupação se aproxima à ideia primordial do trabalho não alienante, citado anteriormente. Enquanto a “recompensa” do trabalho se encontra no reconhecimento do produtor em seu produto, na ocupação, o próprio ato de ocupar-se é a recompensa, o fim. Ou seja, em nenhum destes casos o fim é o valor monetário gerado pelo produto, mas a relação do sujeito com este resultado – o primeiro está no próprio produto e o segundo, no processo como produto.

Portanto, podemos dizer que o trabalho do artista está muito mais próximo à uma ocupação – segundo a definição de Steryl – pois, ao empenhar-se em produzir um “objeto” de arte, o artista a priori não tem em mente uma remuneração imediata pelo que fez, salvo alguns casos que não vou citar aqui. Visto que um trabalho de arte é fruto de uma pesquisa que vai além do processo material de feitura de uma obra – do projeto à execução –, envolve o autor/artista durante todo o tempo em um processo constante de pensamento e reflexão. E quando estes trabalhos de arte adquirem uma configuração de serviço? Como pensar o produto deste serviço inserido em um contexto onde os “produtos” de um trabalho não possuem o caráter de finalidade que os produtos de um serviço prestado possuem?

A aproximação entre arte e vida, idealizada nos anos 70, permitiu com que situações comuns e rotineiras fossem revisitadas pelo universo da arte contemporânea. Ações simples, como chorar diante de uma câmera no vídeo “I’m too sad to tell you”, de Bas Jan Ader, ou a encenação de cenas cotidianas, frequentemente vistas nos happenings de Allan Kaprow ressignificaram diversas ações rotineiras. É interessante notar que o formato do happening e da performance foram essenciais para este movimento de aproximação entre arte e vida, pois durante o happening, artista e  público podem se misturar e, muitas vezes, as ações se dão de forma inusitada em espaços não institucionais como museus e galerias.

Esta prática de aproximação entre arte e vida influenciou diversos artistas e coletivos anos e anos após seu surgimento, como, por exemplo, os artistas do que chamamos de “Estética Relacional”, termo cunhado por Nicolas Bourriaud, em 1990, que, em suas propostas, criavam situações propícias para o contato entre público e artista, público e público, a fim de que um significado fosse construído coletivamente. Rirkrit Tiravanija, um dos artistas mais emblemáticos dessa geração, possui uma produção interessante, em que mescla arte e vida e interação público-público-artista. Em muitos de seus trabalhos, Tiravanija se propõe a servir ao público comida tailandesa feita por ele mesmo, transformando o espaço do museu em uma grande cozinha e ocupando este mesmo espaço com forte cheiro de curry. Anterior a Tiravanija, Gordon Matta-Clark fundou o restaurante “Food” em 1971 no SoHo, em Nova York. O restaurante funcionava como uma cozinha/ateliê experimental, artistas trabalhavam lá voluntariamente como chefes, garçons, faxineiros, etc. Os excêntricos pratos eram vendidos a preços muito baixos e alguns deles saíam de graça. O trabalho (neste caso, quase braçal) de Matta-Clark e Tiravanija não resultava apenas em alimentar o público, mas preenchia a necessidade de criar espaço de diálogo e interação entre este público consumidor. O restaurante Food, diferente da obra de Tiravanija, criou um ponto de encontro frequente entre os artistas da época, onde era possível, de fato, discutir, trabalhar e cozinhar ao mesmo tempo. Estes espaços de interação entre público e artista, longe da instituição sempre se fizeram presentes, desde o Café Voltaire, para os dadaístas até os bares mais comuns que frequentamos hoje em dia.

Quando o serviço serve a arte, trabalha para a comunidade – tanto artística quanto pública – muitas vezes, não no sentido de oferecer um trabalho social que supra necessidades físicas, mas como uma mobilização à criação de espaços de reflexão, discussão e lazer. Nos trabalhos da Repartição Pública, tanto a licença poética quanto o educativo paralelo são esforços engajados, serviços prestados para alguém, ainda que produzindo objetos “inúteis”; a verdadeira utilidade do trabalho, seu verdadeiro “produto” está no envolvimento do público no processo de criação destes espaços, transformando-os em “ocupados” também por esse processo. Portanto, o trabalho de arte, devido ao seu caráter de ocupação em que o resultado e o produto estão no processo – no executar, ou seja, não há fins para os meios, mas os meios são os fins – é um serviço para si mesmo.


[1] O Coletivo Repartição Pública é formado por mais quatro integrantes: Gabriel Lemos, João Carlos Teixeira, Fernando Sala e Ronan Cliquet.

[2] A Licença Poética foi apresentada no evento-exposição organizado pela turma de bacharelado em História, Crítica e Curadoria da PUC-SP, coordenada por Cauê Alves, com o título de “Processos Públicos”, no porão do Paço das Artes na Cidade Universitária da USP. Para essa proposta, o Coletivo pensou em um formato inédito que só seria possível pela enormidade do espaço de que dispúnhamos. Optamos por separar cada parte do processo de confecção da carteirinha em “guichês” dispostos distantes um do outro; dessa forma, a pessoa interessada em adquirir o documento deveria percorrer um trajeto e se informar sobre a localização dos guichês. Esta proposta é inédita, pois sempre que realizávamos este trabalho nos reuníamos em uma mesa só, concentrando a confecção da carteirinha.

[3] Entendo aqui a utilidade da arte em seu sentido mais superficial.

[4] Educativo Paralelo foi uma proposta apresentada no 43º Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, e consistia em um serviço educativo terceirizado. O Coletivo fez três ações de mediação com as obras do salão e um catálogo com textos sobre cada uma, todos produzidos pelos próprios membros da Repartição Pública.

[5] Estas definições sobre trabalho são desenvolvidas por Vladimir Safatle, em sua fala no  encontro de filosofia Mutações: Elogio à Preguiça, disponível em: http://elogioapreguica.com.br/?page_id=543

[6] “Uma ocupação não se dá em função de nenhum resultado; não  tem necessariamente uma conclusão. Assim, não conhece a alienação tradicional, nem qualquer ideia correspondente de subjetividade. Uma ocupação não necessariamente assume remuneração também, dado que o processo é concebido para conter sua própria gratificação. Não há divisões no tempo, exceto o passar do tempo em si. Não é centralizado em produtores/trabalhadores, mas inclui consumidores, reprodutores, até mesmo destruidores, ociosos e observadores – essencialmente, qualquer pessoa procurando distração ou engajamento.” Tradução por Daniel Rubim.