Arranha-céu de improviso por Juliana Monachesi
Arranha-céu de improviso
JULIANA MONACHESI
Na produção de uma Monica Nador sempre se aponta o limiar entre arte pública e assistencialismo. Na obra de um Emmanuel Nassar, por outro lado, costuma-se chamar a atenção para o limite entre popular e populista. São riscos que os artistas correm. E que escolhem correr. A intervenção atualmente em cartaz no Ateliê 397, em São Paulo, de autoria dos artistas Bruna Costa e José Bernnô, intitulada Torre, insere-se neste rol de discussões.
O projeto nasceu de uma vontade de realizar pinturas em uma favela localizada no bairro do Limão, próxima à oficina de funilaria e mecânica de Bernnô. Eram meados de 2003 e os artistas chegaram a procurar a Prefeitura de São Paulo, os líderes da comunidade e possíveis patrocinadores e parceiros para viabilizar o projeto. As negociações ficaram emperradas, até que, no final do ano, a prefeitura transferiu os moradores da favela e demoliu todos os barracos.
Ficou a vontade de empreender um trabalho coletivo envolvendo arte e também de fazer a pintura dialogar mais de perto com a cidade. Mas que tipo de dimensão pública é possível a um trabalho em pintura, a mais solipsista das práticas artísticas? A experiência de Nador com o projeto Paredes pinturas, que consiste -falando muito superficialmente- em embelezar moradias de bairros carentes com a participação da comunidade desde a produção de padronagens até a ação de pintar casas e muros, é um exemplo bem-sucedido de inserção social da pintura.
Outro exemplo interessante de migração da pintura para as ruas é a intervenção de Adriana Rocha, intitulada Paisagens imaginárias, em quatro regiões de São Paulo no final de 2004. A artista concebeu quatro imagens de paisagem para serem pintadas em muros no Tucuruvi (zona norte), sob o viaduto Antártica (zona oeste), nos Campos Elíseos (centro) e na Penha (zona leste), propondo um diálogo com a paisagem urbana, e empreendendo uma negociação -com instâncias burocráticas, na etapa de pedidos de autorização, e com usuários dos equipamentos urbanos, durante o processo de realização das pinturas murais- entre arte e cidade.
“A escolha do ‘muro’ tem relação com a tradição do muralismo, com a prática do grafite e da pichação, mas principalmente com a ideologia da fortificação. O muro é um monumento à disciplina e ao medo. Presídios, escolas, manicômios, hospitais, condomínios fechados são impensáveis sem muros. E um artista preenchê-lo com uma representação da natureza diz muito a respeito desta mentalidade da fortificação. Esta ação como que propõe um paradoxo: um respiro de paisagem na impermeabilidade do concreto. Um intervalo na cinzenta paisagem urbana.” (1)
A negociação está na base do projeto de intervenção urbana de um outro pintor para a cidade de São Paulo, que ocorreu também no ano passado. Eduardo Srur levantou o seu Acampamento dos Anjos (em um edifício na avenida Dr. Arnaldo) depois de meses de diálogo com órgãos públicos. Ações deste tipo, que à primeira vista têm algo de quixotescas, resultam numa interferência radical no cotidiano das pessoas, sejam milhões -que transitaram pela Dr. Arnaldo-, sejam centenas -que conviveram com o trabalho de Rodrigo Andrade intitulado Lanches Alvorada, uma pintura/instalação que até pouco tempo ainda podia ser vista num boteco na rua Dona Veridiana, 212.
Quando a geometria bamba encontra a dança
O diálogo com a cidade já era uma questão tanto para Bernnô como para Bruna antes de proporem pintar a favela no Limão. “Minhas pinturas representam o lugar onde eu vivo” (2), conta Bernnô, que em 2004 teve uma série de obras sobre papelão selecionadas e expostas no Salão de Arte de Ribeirão Preto. Neste mesmo ano, o artista fraturou a mão direita e passou a produzir trabalhos em pequenas dimensões. Bernnô, que também é músico, mescla em sua pintura a cor local e as formas arquitetônicas precárias, obtendo uma espécie de geometria bamba e vibrante.
Bruna Costa, arquiteta de formação, sempre aliou em suas pinturas a preocupação espacial com a utilização de refugos urbanos e industriais. Além disso, já vinha ensaiando algo de um trabalho coletivo em outros de seus projetos. Na obra Dança, por exemplo, que apresentou na mostra de inauguração do Ateliê 397, em dezembro de 2003, ela se utilizava de obras de outros artistas, apropriadas e incorporadas a sua instalação. Bruna e Bernnô conheceram-se no Espaço Virgílio, onde estudaram sob a orientação de Marco Giannotti entre 2003 e 2004.
A construção da Torre foi embasada na pintura, tanto em termos de referências conceituais como de processo de fatura. “Foi por meio do fazer que nós fomos construindo a obra; o fazer é algo que me motiva, o decidir fazendo”, diz Bernnô. A primeira idéia era aproveitar o trabalho de Fabiana Queirolo que estava no local, incorporando-o à obra deles. Ambos acompanharam a montagem da peça metálica estendida sobre a superfície do muro e propuseram à artista uma continuidade. “A nossa idéia era fazer uma intervenção sobre a obra da Fabiana”, conta Bruna, “já apostando na coletividade do trabalho de arte”.
No decorrer da exposição de Fabiana Queirolo, entretanto, a instalação despencou do muro e a artista transformou o trabalho, dando outra solução para a mostra. A idéia de Bernnô e Bruna mudou então para aproveitar o suporte do andaime, que seria utilizado para a retirada da obra. O resultado final engloba todo o percurso do projeto, todo o repertório que os artistas criaram para ele e também que incorporaram a ele: a pintura que seria voltada para a favela aparece no material usado, a estrutura da Torre remete à exposição da colega Fabiana Queirolo.
O andaime foi coberto por tapumes pintados, que acabaram se espraiando também pelo restante do espaço, principalmente o muro do Ateliê 397. Os tapumes interessavam aos artistas tanto pelo colorido como por sua característica de servir, na linguagem das ruas, a um duplo propósito: o de fechamento de uma área e o de suporte para lambe-lambes e toda sorte de publicidade precária. O tapume se tornou signo de conquista do espaço urbano. A serigrafia, que já vinha sendo desenvolvida por Bernnô e Bruna em um projeto anterior de confecção de bolsas com lona de outdoor, entrou como um elemento compositivo a mais da intervenção.
Torre como torre de vigilância
Uma vez instalada, a Torre ganhou interpretações para além da pesquisa de Bruna e Bernnô com os materiais populares e do interesse da dupla em estabelecer uma relação mais harmônica do que tensa entre pintura e cidade. A verticalidade da obra, instalada no meio de um quarteirão, remetia à idéia de observatório. “As relações entre torre e morro, escalada, torre de acesso, torre de vigilância foram ficando evidentes e nós incorporamos isso, inclusive intitulando a obra desta maneira”, conta Bruna. “O lugar ideal da Torre seria o Projeto Cães de Caça, do Oiticica”, brinca Bernnô.
Tem muito de HO na intervenção, principalmente das conquistas do artista no campo da pintura (ou, melhor, de extrapolação deste campo). Assim como existem paralelos possíveis entre Torre e o primeiro projeto ambiental de Oiticica, Cães de Caça, que existe apenas como maquete. O labirinto sem teto, composto de Penetráveis e obras de outros artistas, pretendia ser um jardim aberto ao público, em que este se depararia com diversas situações estéticas, tendo de percorrer a obra, vivenciá-la com o corpo. O projeto de 1961 dialoga com os Núcleos, que HO vinha desenvolvendo no mesmo período, pinturas no espaço, ou “integração dos elementos cor, tempo e espaço numa nova estrutura” (3).
“Os Núcleos (1960-63) consolidam as principais questões levantadas pelos Bilaterais e Relevos espaciais; ampliam o problema da espacialização da cor e conceitos relativos à ‘estrura-cor’ ativa. São placas de madeira pintadas, com dupla superfície, presas ao teto por um suporte de madeira. Nos primeiros Núcleos, não havia a possibilidade de movimentar as placas; aos poucos elas vão ficando mais soltas e incorporam o espaço exterior. A exploração é condição para o conhecimento desses trabalhos: para desvendá-los, o sujeito deve investigar suas potencialidades, suas várias facetas. A disposição das placas cria espaços virtuais, favorece a tensão entre luz e sombra, o jogo interior/exterior; elas são pintadas em tons muito próximos, cuja variação segue um ritmo elaborado.” (4)
Apesar de não se voltarem ao “núcleo da cor” em seu trabalho conjunto, Bruna e Bernnô flertam com a pintura nuclear em suas produções individuais. Em Torre, a opção por tapumes presos precariamente que dão a ver ambas as faces sugere a filiação a HO. O trabalho é um visto “de frente”, quando o visitante entra no Ateliê, é outro visto “de baixo”, e outro ainda visto “de trás”, quando o visitante já percorreu todo o corredor e se volta para a porta. Este vai-e-vem que o trabalho incita soma-se à vista que se tem da rua, de onde se espreita o topo da torre, levando a uma consciência de impossibilidade de apreensão total da obra.
Por conta destas nuances de apreensão, os artistas se viram movidos a realizar uma série de fotografias do trabalho, na qual identificaram novas questões pictóricas e relações espaciais. Estas fotografias, que estão expostas no corredor de entrada do Ateliê 397, devolvem a obra para a bidimensionalidade da pintura, inclusive por recolocarem a luminosidade na própria superfície dos planos trabalhados. Tendem todas à abstração, lembrando as pinturas de Bruna e Bernnô.
Por fim, cabe falar do precário. O discurso do precário, na arte, tem sido reatualizado por artistas como Fernanda Gomes, Rivane Neuenschwander, Marepe, Jarbas Lopes, estes dois últimos em uma linguagem que flerta bastante com a visualidade popular também, na linha de Emmanuel Nassar. Há críticos que defendem mesmo que um conceito de estética da gambiarra se configura ao redor destes nomes. É o caso de Lisette Lagnado em artigo de 2003 na revista Trópico:
“A gambiarra, mesmo que utilizada com diferentes nuances, com mais ou menos alegoria dependendo da vocação do artista para o símbolo, é a peça em torno da qual um tipo de discurso está ganhando velocidade. O mecanismo da gambiarra (…) tem um acento político além do estético. Há uma ressonância do Parangolé, pelo fato de abranger toda uma rede de subsistência a partir de uma economia informal, com soluções de baixo custo e de puro improviso.” (5)
A crítica e curadora chama a atenção, no entanto, para o risco de se agrupar sob a rubrica da gambiarra todo e qualquer trabalho de tom regionalista ou, ainda, obras cujo apelo é o elogio do manufaturado. “Só abandonando a acepção vulgar da palavra, será possível criar o conceito”, afirma mais adiante. As soluções formais de Bruna e Bernnô apontam para uma filiação à estética da gambiarra, no entanto há que se buscar o “acento político além do estético”. O acento está ali em potência, e talvez venha a se confirmar nos próximos desdobramentos deste projeto da dupla.
Notas:
1 – MONACHESI, Juliana. Paisagens Reais, texto para o catálogo do projeto Paisagens Imaginárias, de Adriana Rocha. São Paulo, novembro de 2004.
2 – Todas as frases de José Bernnô e Bruna Costa citadas neste texto são provenientes de entrevista com os artistas feita pela autora no dia 31 de maio de 2005 no Ateliê 397, em São Paulo.
3 – OITICICA, Hélio. Documento sobre o Projeto Cães de Caça, disponível no site do Projeto Hélio Oiticica/Instituto Itaú Cultural: http://www.itaucultural.org.br/aplicexternas/enciclopedia/ho/index.cfm?fuseaction=documentos&cd_verbete=4523&cod=37&tipo=2
4 – MATESCO, Viviane. Corpo-cor em Hélio Oiticica, texto para o catálogo da 24ª Bienal Internacional de São Paulo, 1998, disponível em http://www1.uol.com.br/bienal/24bienal/nuh/pnuhoiticic02a.htm#notas
5 – LAGNADO, Lisette. O malabarista e a gambiarra, ensaio publicado em outubro de 2003 na revista digital Trópico, disponível no endereço http://p.php.uol.com.br/tropico/html/textos/1693,1.shl